Resenha apresentada para conclusão da disciplina de América I, ministrada pelo prof. Dr. Ernesto Sena, pela aluna Kelly Lohnhoff de Souza:
Moreira da Costa, José Eduardo Fernandes. A coroa do mundo: religião, território e territorialidade Chiquitano. Editora da UFMT, 2006.
Já no prefacio do livro, Jürgen Riester, diz 2.500 chiquitano “tienen como morada el território brasileiro” (pág. 13).
Esse levantamento dos chiquitano foi possível somente pelo Estudo de Impacto Ambiental – EIA quando da construção do gasoduto Bolívia-Mato Grosso, que mostrou uma população significativa desse povo.
O autor utiliza o significado de Parejas Moreno e Sales (1192, p. 313), que chamaria de “Chiquitanos a todos los indígenas del continente admitidos em la comunidad de la província de Chiquitos” e explica que a grafia no singular é consequência da primeira reunião da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, realizada em 1953 no Rio de Janeiro e publicada na Revista Antropologia, Vol. 2, nº 2 em dezembro de 1954.
Com o reconhecimento étnico promovido pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio – em 1999, foram incluídos nas diversas ações do governo, seja de assistência na área da saúde e educação, ou com programas estratégicos, tais como o BID Pantanal, o Sistema de Vigilância da Amazônia – SIVAM e o Projeto de Segurança Integrado da Região da Fronteira Oeste.
Eles estão localizados em uma região compreendida pelos paralelos 15º e 16º30’ de latitude sul e os meridianos 57º30’ e 60º30’ de longitude oeste de Greenwich, situada no extremo oeste de Mato Grosso, entre os municípios de Cáceres, Porto Esperidião, Pontes e Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade.
Em 1691, com incentivo do governo de Santa Cruz de la Sierra, os padres inacianos fundaram varias missões religiosas nas Províncias de Chiquitos: San Xavier, San Rafael, San José, San Juan Bautista, Concepción, San Miguel, San Ignácio de Zamucos, San Inácio, Santiago, Santa Ana e Santo Corazón. Ali se reuniam diversas etnias: Pinocas, Taus, Boros, Petas, Chiquitos, Guarayos, Saravecas, Kuruminacas, Otuques, Zamucos, Manacicas, Tapis, Potororos entre outras.
As missões eram dirigidas por jesuítas encarregados das atividades espirituais e materiais, que contavam com uma espécie de gabinete, o Cabildo Indígena, composto por caciques para auxiliar. Os índios deveriam cumprir com obrigações religiosas e produtivas para a própria subsistência e para o comercio cm o Ocidente andino, em caso de desobediência, a mesma era punida severamente com castigos corporais e prisões.
Após o Tratado de Madri, em 1750, foi estabelecida uma política de povoamento da fronteira, inclusive com a distribuição de sesmarias e o deslocamento das pessoas para a fronteira da Capitania de Mato Grosso com a Província de Chiquitos. Mas para a posse da terra era necessária mão-de-obra, assim os índios foram acolhidos para fomentar a produção de gêneros alimentícios e fornecer braços para a ocupação portuguesa.
Em 1850 com a promulgação da Lei de Terras, além da definição dos limites da Província de Mato Grosso, intensificaram a ocupação das terras dos índios Chiquitano na faixa de fronteira, utilizando sua mão-de-obra, através de serviços forçados, em geral.
Na década de 1970, com o Estatuto da Terra e a chegada do Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA - fomentam a regularização fundiária e expropriam os índios chiquitos, jogada a própria sorte, as famílias nucleares construírem novas moradas nos lotes destinados pelo INCRA, ou foram sendo diluídas e seus membros dispersos.
Diante da segregação imposta, passaram a ser denominados com adjetivos pejorativos, tais como bugres, preferiam ocultar a identidade indígena, a língua e suas próprias raízes históricas e culturais, e todos vestígios que fizessem com que deixassem de serem percebidos como cidadãos brasileiros.
Nesse sentido, o autor, focou sua pesquisa, em uma analise que aproxime o cotidiano d grupo de Chiquitano no Brasil de um panorama etnogeográfico. Sendo o título A Cora do Mundo, gestado a partir da percepção do líder espiritual Chiquitano, Lourenço Rupe, referindo a antiga Missão de Santa Ana como a coroa do mundo, o centro de referencia histórico-cultural de sua religiosidade.
Ao trazer a etnia para o centro da análise geográfica, o vinculo com a terra informa sobre o grupo, compõe sua identidade e traduz sua trajetória assinala, marcos, limites, percursos dos antepassados, divergências internas e tantos outros marcos seja em relação à natureza, seu modo de habitat.
Através da Geografia Cultural percebe-se que as manifestações culturais como as cerimônias religiosas indicam, entre outras coisas, a realização da sociedade em reconhecer em seu território os laços que os unem e sua identidade cultural. Assim, as romarias dos Chiquitano possibilitam romper fronteiras, percorrendo territórios construindo e reforçando o arco de aliança, congregando pessoas, visitando casas, chácaras e sítios.
O autor tenta estabelecer a relação entre religião, território e território como objeto de analise proposto, em que o espaço sagrado reflete valores culturais e históricos, remontando a trajetória do grupo também dentro do contexto da Geografia Política, descortinando o território Chiquitano, com suas formas variadas, com suas contradições e uma superposição de diversos territórios.
Para o autor, o espaço não guarda apenas a historia, mas a condição para a sua realização, produzindo combinações especifica. Assim, o seu estudo procura abordar seu objeto através de diferentes perspectivas, intecionando compor uma visão-sintese da questão, através da produção acadêmica da geografia e das ciências sociais, conceptualizando a territorialidade dos Chiquitano, vinculada a uma dimensão histórica e simbólico-cultural.
O autor escolheu a procissão de Santa Ana como objeto de pesquisa a ser priorizado devido ao fato de ser uma das principais manifestações da religiosidade Chiquitano, dura cerca de 60 dias de peregrinação entre fazendas e aldeias, por um extenso percurso de aproximadamente 400 km de caminhada. O trabalho de campo foi realizado durante o ano de 2003, pautado por entrevistas abertas e dirigidas aos índios, dirigentes eclesiásticos, funcionários de prefeituras, gerentes de hotéis, fazendeiros, militares, membros de associações civis, vendedores ambulantes e comerciantes locais.
No subtítulo A Formação do Território Chiquitano, o autor passa abordar a busca pelo El Dourado, e a fundação do Puerto de los Reys na região do alto Paraguai, por Domingos Martinez de Irala, onde negociou com os índios Xarayes a obtenção de informações seguras e apoio para penetrar rumo ao oriente. Por volta de 1547, o capitão Irala, em companhia de Nuflo de Chaves, percorre esse caminho e cruzam os territórios dos Mbayás, Chanés, Toyanas, Payonos, Mayákenos, Moronos, Pornis, Simenos, Guorkonos, Karkonos, Siberis, Paysunos, Gorgotis, para assim atingir o rio Guapay ou grande, morada dos Tamakosis.
Nessa expedição eles cruzaram com índios que dominavam o idioma castelhano e perceberam que a região estava sendo também explorada pelo vice-reinado do Peru. Em meio a estabelecer no caminho entre Assunção e Lima, Nuflo, funda, em 1559, Nueva Asuncion, a primeira povoação no território Chiquito.
Nuflo de Chaves utilizando habilidades persuasivas e da relação de parentesco de sua esposa com o vice-rei do Peru, pois fim da disputa de terras entre Paraguai e Peru, voltou a Lima como tenente-general do governo de Moxo, expulsa o capitão Manso de La Barranca e subjuga os índios Tamakosis e os Gorgatokis, instalando Santa Cruz de La Sierra em fevereiro de 1561, dois séculos depois, a Missão de San José dos Chiquitos.
Ao explorar as possíveis riquezas da Província de Moxos, estabeleceu numerosas encomiendas submetendo milhares de índios de diferentes etnias ao regime forçado, trabalhando na encomienda originária onde eram submetidos a trabalhos realizados diretamente nas casas e fazendas, pelos serviços domésticos e trabalhos agrícolas, muitas vezes as índias eram tomadas como concubinas e na encomienda mitaya onde era permitido aos índios viverem em suas terras originárias, porem, obrigados a trabalhar regularmente nas propriedades dos encomienderos.
Sendo que os assaltos constantes praticados pelos indígenas serviram como mais um motivo para que os espanhóis escravizassem e os vendesse no altiplano, isso com o respaldo do governo da província. Nesse interir, os espanhóis já haviam descoberto um antídoto para o veneno das flechas dos Chiquitos, que começavam a travar batalhas com os mamelucos, os bandeirantes brasileiros.
Como os mamelucos tornaram-se oponentes dos Chiquitos, estes se apresentaram como aliados estratégicos na defesa do espaço colonial, capazes de obstar uma possível expansão dos domínios portugueses.
Assim, evangelizar e armar os índios Chiquitos passou a nortear a política de defesa do território que culminou na organização das reduções como forma de conter a ação dos invasores.
Em 1635 na Audiência de Charcas é autorizada a conquista espiritual dos índios pelos jesuítas, que iniciam em 1668 as primeiras missões em Mojos y Chiquitos.
A entrada efetiva da Companhia de Jesus na Província de Chiquitos por um lado desagradava a maioria da população de Santa Cruz que via aí um obstáculo ao trafico indígena e por outro lado os que acalentavam a ilusão de alcançarem a Província de Moxos.
As missões apresentavam, antes de tudo, como um reduto seguro. E assim foram sendo fundadas: em 1691 San Francisco Javier, em 1696 San Rafael, em 1721 San Miguel, em 1755 Santa Ana.
O trabalho de redução dos índios era de uma enorme complexidade e realizado em circunstancia de extremo risco, sendo que o missionário deveria ser dotado de fé e motivação inquebrantáveis. Eles respondiam a autoridade do Governo e do Bispado de Santa Cruz, sendo, contudo, regidas por uma legislação específica, a Recopilacion de las Leys de Índias, de 1680.
Para o autor, a complexidade da tarefa missioneira não era apenas de superar a barreira da língua, mas também de contornar o raciocínio lógico dos índios. Assim, os missionários, inicialmente eram obrigados a tolerarem e a dedicarem um aspecto exterior da doutrina cristã como forma de incorporar os índios gradativamente ao cristianismo.
As concepções do sagrado aproximavam mais as religiões indígenas entre si do que estas com a teologia cristã, que era operada com elementos estranhos à realidade local. Fazendo com que o xamanismo sobrevivesse como ato secreto, destinado à satisfação dos interesses individuais e de reconhecida importância terapêutica.
A religião cristã, e aqui o autor cita Jürgen Riester (1986), sob a ótica indígena, era povoada por personagens distantes de um mundo intangível, diante da concretude local, e repleta de historias de personagens capazes de realizarem proezas fantasiosas de difícil reprodução.
Em outro aspecto, o autor, diz que os índios estavam integrados à propriedade coletiva, o sistema missional contava também com uma rede de estâncias, como uma maneira de superar as longas distancias entre os povoados, além de abastecer de carne e animais de transporte pessoal e de carga.
Em terras brasilis, no inicio do século XVIII, bandeirantes descobrem ouro em terras dos índios Coxiponé, fundando em 1719 o Arraial do Bom Jesus de Cuyabá, um pólo minerador em um dos afluentes do Alto Paraguai.
Com a ocupação luso-brasileira se estendendo até o território de Cuyabá, do Solimões ao rio Grande de São Pedro, instalou-se uma tensão entre espanhóis e portugueses.
Dom João V contratou em 1722 dois padres matemáticos da Companhia de Jesus para fazerem observações e mapas do Brasil e dos seus sertões estabelecidos em território reservado à Espanha.
Cuiabá e as minas de Mato grosso, aqui como fonte o autor cita Cortesão (2001, p.148-150), começava a se configurar como centros formadores de fronteira. E dessa forma, a metrópole necessitava assegurar definitivamente a comunicação do rio Guaporé com o rio Jauru, este afluente ocidente do Alto Paraguai.
Ocorre que para chegar nas minas de Cuiabá era necessário adentrar profundamente em terras ditas como castelhanas, atravessando diversos territórios indígenas.
Criou-se a Capitania de Mato Grosso em 1748 tendo Vila Bela da Santíssima Trindade como sede, em 1752, o que assegurava as possessões a Portugal.
Com a expulsão dos jesuítas das Missões Espanholas e a substituição pelos padres seculares que passaram a permitir a utilização da mão-de-obra indígena pelos encomendeiros. Levaram os índios a procurarem abrigo em território português contra as perseguições dos novos patrões e atraídos pelas benesses da Coroa Portuguesa – os aldeamentos de índios na beira do rio Barbado e as fazenda de gado (Nacional da Caiçara e Caité).
O major Frederico Rondon, citado pelo autor, sinaliza a transferência dos índios da Província de Moxos para Casalvasco em 1783. Ela era constituída por extensas terras, abrangendo todo o vale do rio dos Barbados e do rio Alegre.
No capitulo sobre a Coroa do Mundo, o autor, diz que a Missão de Santa Ana, por ter sido alçada à sede do governo da antiga Província de Chiquitos, pode contar mais regularmente com os serviços religiosos das curas seculares, constituindo-se em uma referencia regional, inclusive contando com prestigio político e religioso, como núcleo do poder e convergência de pessoas e decisões.
Anualmente uma procissão sai de Santa Ana em direção à fronteira do Brasil. Esses pequenos grupos de missioneiros carregam a imagem da santa padroeira da missão e no transcorrer da procissão vai agregando temporariamente novos devotos.
O itinerário da peregrinação são previamente discutido e estabelecido com base na trajetória da viagem anterior. O tempo de permanecia é de um a três dias no seio das comunidades. Escolhem a casa em que a santa fará noite e onde serão acolhidos e alimentados. Visitam as casas, orando pela saúde e prosperidade dos moradores e recolhem dinheiro e donativos. Visitam também cemitérios para rezarem pelas almas dos que já faleceram.
Eles iniciam o percurso pelas comunidades e propriedades rurais localizadas na Bolívia, depois passam a visitar as situadas exclusivamente em solo brasileiro e novamente atravessam a fronteira e retornam para Santa Ana.
No Brasil um dos locais visitados, em 2003, é a Comunidade de Santa Mônica, próxima à fronteira com a Bolívia, junto ao Destacamento Militar de São Simão. O autor diz que durante muito tempo, a peregrinação se estendeu até a comunidade de Fortuna e outros núcleos populacionais Chiquitano.
No texto A espera da santa, o autor, descreve o amanhecer na cidade de Santa Mônica e a preparação da chicha, uma espécie de cerveja apreciada pelos índios, descrevem o funcionamento da aldeias, os casamentos.
Na parte que descreve O espaço sagrado e profano é descrito a festa, o comercio, a agitação dos romeiros, descreve a Igreja de Santa Ana com suas características especiais com um suave brilho resplandecente quando, sob a luz solar, devido ao uso de mica em sua decoração.
O espaço sagrado é o lugar onde se encontra a imagem da santa, onde a simbologia e os ritos mágico-religiosos possibilitam a ligação entre o Chiquitano e o divino; já o profano é compreendido pela área externa da igreja, onde está reservado ao comercio, ao lazer e à habitação.
Moreira da Costa destaca que “o ritual católico não impediu os Chiquitano de acomodar a religiosidade indígena pré-jesuítica”, prosseguindo diz que “terminada a cerimônia, se despedem da santa e seguem para o prédio oficial do Cabildo (...) ao som da música Chiquitano, bebem chicha e dançam”.
A revelação trazida pela fé crista aparentemente, diz Moreira da Costa, não destruiu os significados pré-jesuíticos da simbologia indígena, acrescentando um novo valor. A oblação da chicha é parte de sua tradição mais viva, com força suficiente para resistir no âmago de cada um e nas representações coletivas.
A festa de Santa Ana, entre outros significados, indica a realização da sociedade (índios e não-índios) no reconhecer não só a sua própria humanidade, mas também os laços que nos une.
Para Moreira da Costa, a restauração das antigas missões de Chiquitos e a sua declaração pela UNESCO de Patrimônio Cultural da Humanidade, cujo conteúdo simbólico-cultural é alimentado pelas festas religiosas e procissões, constituiu em um importe evento na vida de Chiquitos. Para Moreira da Costa marca o inicio de um processo de revitalização do território Chiquitano.