Igreja de Itapolis - Taxidermes do maetro Beil
"Não creio ser um homem. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave, e harmoniosa como as histórias inventadas: sobre a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como na vida de todos os homens que já não querem mentir a si mesmos". Demian
Meu sangue me atraiu... Começo a ouvir as vozes de tempos remotos à medida que me aproximo da cidade do Alferes Pedro Alves de Oliveira, fundada a partir da doação de cento e doze alqueires e cinco décimos de terras ao Espírito Santo, parte da Fazenda Boa Vista. Nasce Boa Vista das Pedras, após os avanços das bandeiras paulistas rumo a Mato Grosso em busca de ouro, sempre paravam em Araraquara.
Chego às 10h50min da manhã de dois de abril de 2006 na cidade de Itápolis, no interior paulista, dominada por pés-de-laranja e de cana-de-açúcar.
Na Rodoviária informo sobre a localização do Museu da cidade (não havia me preparada para isso... não tinha mapa, idéia... apenas vozes...).
Começo a caminhar pela cidade... Passo ante passo... No asfalto passo a ver paralelepípedos... Nas casas só vejo janelas de pé altos, de madeiras e telhas de barro artesanais. O coração chega a disparar a cada passo... Sinto a pulsação intensa... Ao avistar a Igreja Matriz, do padre vigário Salvador Tarallo, Paróquia do Divino Espírito Santo da Boa Vista das Pedras.
De frente a Matriz revê a pracinha em dia de inauguração, lampião a gás fazendo a iluminação, o corretinho todo enfeitado de fitas, para que o capitão Custódio Teixeira Pinto discurse em sua inauguração e de passagem a Corporação Musical "Vitório Manoel III", para execução de um bonito programa... Pena que na frente não esteja o maestro que procuro... Está o maestro Raphael Mercaldi. Corporação essa fundada pelo Padre Tarallo em 1890. Avisto o busto do compositor italiano José Verdi homenagem do maestro Zeferino Bartolomassi.
Informo-me novamente da localização do Museu e sigo meu caminho... Logo avisto o Museu... Pena que em pleno domingo não tive a felicidade de encontrá-lo aberto. O passado fechou meus olhos. Sair de tão longe e "dar com os burros n’água".
Meu sangue ferveu... Mais pela primeira vez... Não foram transformadas em lágrimas... Tirei a câmera fotográfica e tirei fotos da entrada onde tinha a informação que o Museu Pedagógico e Histórico Alexandre de Gusmão funciona de segunda a sexta, da entrada do Museu, da placa incrustada nas pedras. Um prédio bonito que necessita de reformas... Antes que me esqueça o site da prefeitura informa funcionamento no domingo das 09h00min às 12h00min horas.
Ouço voz... Ouço passos... E em meu coração sinto que tenho que prosseguir... Passa um homem numa bicicleta... Informo sobre o Cemitério... Sigo em frente... O sol vai de guia... Passo a passo comigo pensamentos e sensações... Não sinto medo... O desconhecido me fascina... Algo que não sei dizer... Compro uma coca-cola... Continuo andando... Informo do caminho certo... Chego ao cemitério... Coração dispara... Os olhos tentam enxergar o enterro do Padre Tarallo, mulheres, homens e crianças chorando numa comoção unissilábica. Avisto um senhor pergunto sobre a administração do cemitério e ele me informa que os coveiros estão em almoço só retornando às 13h00min horas, olho o relógio falta um pouquinho para o meio-dia. Acomodo-me em um banco que dá para a ‘capela’. Aproximam varias pessoas a perguntar de velório de um crime da noite anterior, em nada posso ajudar; fazem-me perguntas e respondo... E acho que eles me acham meio maluca... Pensa bem... Saiu de sua cidade – Cuiabá/MT – ta certo que estava em São Paulo/SP em curso – vou numa cidade de interior – Itápolis/SP, e estou sentada no banco ao lado do cemitério... Mas mais maluco que eu é o guarda que fica guardando um tumulo dentro do cemitério.
Chega o primeiro coveiro, pergunto onde está o maestro Alberto Beil, ele não sabe se é quem eu procuro e me leva ao tumulo do maestro Raphael Mercaldi. Não sei se minha cara mostrava minh’alma... E ele me diz ‘vamos esperar o outro coveiro, ele é coveiro aqui há 20 anos’. Volto em silêncio... A alma sangra... Pergunto se não tem um livro e ele me informa que o ‘Livro dos Mortos’ está na Prefeitura.
Volto a me sentar no banco... Chega o outro coveiro o sr. Vinhole (acho que é isso), o primeiro diz ao segundo que procuro o Maestro Alberto Beil, ele ri e diz ‘você nunca iria achar’, sinto um arrepio... Ele me conduz ao túmulo, errando algumas vezes o caminho, depois me diz que o ponto de referência é o Túmulo do Massari.
Túmulo simples... Tento enxergar as pessoas presentes em seu enterro... Não vejo ninguém... Sua esposa Catharina nem a cova dividem com ele - segundo informações esta enterrada em Borborema-SP -... Seus filhos... Ernesto, Olga, Maria Luiza... Ninguém... Não consigo ouvir sua última sinfonia... Um canto calado... Nada... Uma lágrima a cair... Nada... Tudo suspenso no ar.
Ao longe talvez um acorde de violino... Uma nota de piano. Tiro fotos do túmulo... Tento chegar perto dele e ofereço uma prece que vou entoando pelo caminho, enquanto o seu Vinhole me leva para outros túmulos dos Beil’s: ‘não tenho dons, não tenho voz, mais alegro em tê-lo visto, você me trouxe, estou aqui, o que quer de mim’.
Vou a conversar com o sr. Vinhole, a contar que sou tataraneta do maestro, e ele me diz que é parente da Tereza Beil, neta de Ernesto. E pergunta se não quero ir até a sua casa... Ele me leva lá. Conheço o primeiro Beil – sinto tanto estava tão nervosa que não me lembro seu nome – ele liga para o André, o ‘primo’ que tinha contado por e-mail, me mostra uma foto de 1916, dois anos antes da morte do maestro, está toda a Banda lá, num semicírculo, metade em pé e metade sentado, o maestro ao meio, terno impecável, cabelo repartido no redemoinho para o lado, bigode grosso e virado para cima, na foto seu filho Ernesto Beil, todo trajado também, com o violoncelo... Soltei foguetes por dentro, bati foto da foto... Ali esta a sua banda Ernesto Mercaldi no contrabaixo, Jerônimo Joaquim Ramalho no baixo-metálico, Achile Supino no bombardino, José da Costa Sene na clarineta, João Carlos de Godoy na clarineta, Dr. José de Almeida Couto na flauta, Josué Quirino de Moraes na trompa em mi, Raphael Mercaldi no pistão, João Vieira Filho no 2° violino, Paschoal Schiavo no 1º violino, Ernesto Beil no violoncelo, e o regente Maestro Alberto Beil... meu tataravô tinha agora um rosto, um jeito... Saiu do tumulo frio a um vulto quente... Ganhou uma vida frenética, com a batuta na mão... O cabelo nada alinhado, as mãos em movimentos agressivos, constantes, firme... Ele agora era vida com sua coleção de bicho empalhada, como o chifre na sala de jantar da casa de dona Tereza, com sua coleção colorida de borboletas e insetos.
O André chega... Conhecemos-nos... Leva-me até a rua que foi dada o seu nome em homenagem... Tiro fotos da placa; conversamos... Leva-me até sua casa... Lá sou recebida calorosamente pelo sr. João Batista Beil e sua esposa Genair... Sinto uma tranqüilidade... Conversamos, trocamos fotos, lê dou a cópia da foto de Lulu Lohnhoff (Maria Luiza Lohnhoff) nascida Maria Luiza Beil, no Rio de Janeiro e de Theodor Löhnhoff, ainda jovem, guarda-livros, cabelo repartido até a altura do redemoinho e bigode grosso virada pra cima.
Conversamos... Falamos de passado... De lembranças e recordações... E a tarde voou... E no bater de asas levou o tempo o resto de tempo que ainda tinha... Assisto ao futebol na TV... Depois um longo banho... Estava nova de novo... Ele me levou até a matriz... A missa já havia começado, ele me disse que o padre que celebrava a missa é o mesmo que fez o seu casamento... Estava na parte do evangelho, começou a homilia, mais meus pensamentos não estavam muito ligados nas palavras dele... Meus olhos passeavam pelos afrescos do teto, nas pinturas da via sagra... Foi feita a oração costumeira daquela Igreja em época da Campanha da Fraternidade, e de repente... Sinto que flutuei... Não sei se foram meus pés que saíram do chão ou se minha alma saiu do meu corpo... O órgão da Igreja brandiu sua música, imponente, majestosa... Era pra mim, todos os acordes, todas as notas, enfim a música... Era o meu presente de despedida... Era o mais doce adeus que alguém poderia ter me dado... Naquele momento só existia a mim na Igreja... Eu e o órgão... Que talvez não seja o mesmo que a Lulu Beil nem a Olga Beil tenham tocado... Mais eram elas que tocavam tão compenetradas, com o pai ao lado, de olhos fechados a ouvir cada acorde e sentir a melodia, o ritmo, a cadência como os dedos deslizavam pelas teclas. Ao sair da Igreja, um pedaço dela veio comigo e um pedaço de mim ficou nela.
Andamos pelas ruas novas e encontramos as velhas, passamos em frente da morada do maestro... Derrubada e erguida outra no lugar. Bem mais era ali... Ali foi seu lar.
Eles me deixaram na rodoviária peste a embarcar no ônibus e o adeus... Deixo dois mundos... Um da realidade, de uma cidade e de uma família acolhedora e outro dos meus devaneios no tempo.
Durmo o tempo todo da viajem... Ainda ando por São Paulo em plena segunda-feira antes do meu embarque definitivo para minha casa... Em Cuiabá, capital de Mato Grosso, prestes a completar mais um ano de vida e vários de histórias e quem sabe tão parecidas como a que vivi.