31 de dez. de 2008
30 de dez. de 2008
20 de nov. de 2008
2 de nov. de 2008
O Elo Perdido
"Quando se quer estudar os homens,
é preciso olhar perto de si;
mas para estudar o homem,
é preciso aprender a dirigir para longe o olhar;
para descobrir as propriedades,
é preciso primeiro observar as diferenças”.
(Jean Jacques Rosseau, Essai sur Iorigine dês langues, cap. VIII)
APRESENTAÇÃO
A presente dissertação volta seu foco de interesse na análise do filme, Man to Man, lançado no Brasil com o nome de “O Elo Perdido”, do diretor Régis Wargnier, de 2005.
Na promissora Edinburgo de 1879, o jovem médico escocês Jamie Dodd - Joseph Fiennes-, se aventura pela inexplorada África Equatorial na companhia da aventureira Elena Van Den End - Kristin Scott Thomas -, à procura de uma nova espécie. Ao encontar uma tribo de pigmeus, Jamie acredita ter achado o “elo perdido” que faria a ponte evolucionária entre o homem e o símio. Ele captura dois pigmeus para apresenta-los na Academia de Ciência de Edimburgo.
De volta à cidade na companhia de Toko - Lomama Boseki - e Likola - Cécile Bayiha -, o médico desentende-se com seus dois colegas de pesquisa, determinados a provar o elo perdido da espécie humana, os pigmeus são expostos no zoológico local e submetidos a apreciação pública.Assim, o filme retrata um pouco da sociedade moderna e seus conceitos científicos no final do século XIX, a partir da teoria da evolução de Darwin, montando o quebra-cabeça da evolução do homem a partir do macaco.
A presente dissertação volta seu foco de interesse na análise do filme, Man to Man, lançado no Brasil com o nome de “O Elo Perdido”, do diretor Régis Wargnier, de 2005.
Na promissora Edinburgo de 1879, o jovem médico escocês Jamie Dodd - Joseph Fiennes-, se aventura pela inexplorada África Equatorial na companhia da aventureira Elena Van Den End - Kristin Scott Thomas -, à procura de uma nova espécie. Ao encontar uma tribo de pigmeus, Jamie acredita ter achado o “elo perdido” que faria a ponte evolucionária entre o homem e o símio. Ele captura dois pigmeus para apresenta-los na Academia de Ciência de Edimburgo.
De volta à cidade na companhia de Toko - Lomama Boseki - e Likola - Cécile Bayiha -, o médico desentende-se com seus dois colegas de pesquisa, determinados a provar o elo perdido da espécie humana, os pigmeus são expostos no zoológico local e submetidos a apreciação pública.Assim, o filme retrata um pouco da sociedade moderna e seus conceitos científicos no final do século XIX, a partir da teoria da evolução de Darwin, montando o quebra-cabeça da evolução do homem a partir do macaco.
1. DADOS GERAIS
1.1 Ficha Técnica:
Título no Brasil: O Elo perdido
1.1 Ficha Técnica:
Título no Brasil: O Elo perdido
Título Original: Man to Man
País de Origem: África do Sul – França - Inglaterra
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 122 minutos
Ano de Lançamento: 2005
Ano de Lançamento: 2005
Direção: Régis Wargnier
Produção: Farid Lahouassa
Produção: Farid Lahouassa
Roteiro: William Boyd, Michel Fessler, Fred Frougea e Régis Wargnier
Fotografia: Laurent Dailland
Trilha Sonora: Patrick Doyle
Edição: Yann Malcor
Design de Produção: Maria Djurkovic
Figurino: Pierre-Yves Gayraud
Direção de Arte: Zack Groebler e Nick Palmer
1.2 Elenco:
Atriz/Ator Personagem
Joseph Fiennes Jamie Dodd
Kristin Scott Thomas Elena Van Den Ende
Iain Glen Alexander Auchinleck
Hugh Bonneville Fraser McBride
Lomana Boseki Toco
Cécilie Bayiha Likola
Flora Montgomery Abigail McBride
Patrick Mofokeng Zachary
Alistair Petrie Beckinsale
Hubert Saint-Macary Conde de Verchemont
Mathew Zajac Hector Duncan
Willian McBain Angus
Robin Smith Douglas
Ron Donarchie Sir Walter Stephenson
2. ANÁLISE
O filme apresenta o confronto entre a Grã-Bretanha vitoriana e os pigmeus africanos, que é apresentado como o elo entre o homem e o símio, a partir de uma visão de sua própria cultura, que segundo Montaigne “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”.
Uma expedição em 1870 à inexplorada África Equatorial, organizada pelo ambicioso cientista escocês Jamie Dodd e pela viúva aventureira Elena van den Ende, captura, junto com animais selvagens para zoológicos europeus, um casal de pigmeus, que enfrentam uma dura viagem pelo até a Grã-Bretanha, onde são estudados por Jamie, Fraiser e Alexander, que acreditam na teoria de que os pigmeus representassem um elo entre o homem e o macaco. A base de estudo foi fixada nas terras de Fraiser, onde trancafiaram os pigmeus em jaulas.
Para entender melhor, o filme e o texto de Michel de Montaigne, temos que revisitar o cenário do século XIX e suas crenças cientificas. Os cientistas acreditavam que o berço da humanidade era a África, de tal forma que lá deveria ter um elo perdido, um humanóide que ligaria o símio ao homo sapiens. Os africanos, neste contexto, eram vistos como inferiores, até porque só podem julgar a verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos (Montaigne).
Os cientistas começaram seus estudos por medições, ao qual eram feitas analogias ao formato craniano, tamanho do cérebro, estatura, sexualidade. Eles já partiram do pressuposto que os dois pigmeus eram de uma raça muito primitiva, basicamente motivada por instintos e com inteligência amplamente inferior a do homem moderno – homem da metade do século XIX -, baseados na teoria da evolução de Darwin, da qual o homem evoluiu do macaco.
Para Montaigne, a essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem, e dessa forma, quando apresentados, os pigmeus, a Academia de Ciência de Edimburgo, Fraiser e Alexander, provam sua teoria do “elo vivo” entre os homens e os macacos, rebatem a tese de Jamie, que toma consciência que Toko e Likola, são tão humanos quanto eles, por serem capazes de demonstrar sentimentos e raciocínio e serem fisiologicamente iguais ao homem moderno – contexto do século XIX -, sendo a diferença encontrada na cultura e na civilização.
Porque os homens descritos não conseguiam enxergar que a sociedade pudesse subsistir com tão poucos artifícios, como a sociedade de Toko e Likola, tal qual descreve Michel de Montagne, ‘(...) é um país, onde não há comercio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas ai são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo”.
Quando Jamie prova sua teoria, Fraiser e Alexander não conseguem ver acima de seus dogmas e tentam se apoderam do bebê de Likola para estudo, o que é impedido por Jamie e seu patrocinador, e pela ira de Toko, que ataca Alexander em sinal de vingança, tentando defender o que lhe é conhecido, Likola e seu bebê. Porém acaba morto pela fúria dos homens, que igualmente a Toko, julgam moralmente a traição, a deslealdade, a tirania e a crueldade dos atos.
Design de Produção: Maria Djurkovic
Figurino: Pierre-Yves Gayraud
Direção de Arte: Zack Groebler e Nick Palmer
1.2 Elenco:
Atriz/Ator Personagem
Joseph Fiennes Jamie Dodd
Kristin Scott Thomas Elena Van Den Ende
Iain Glen Alexander Auchinleck
Hugh Bonneville Fraser McBride
Lomana Boseki Toco
Cécilie Bayiha Likola
Flora Montgomery Abigail McBride
Patrick Mofokeng Zachary
Alistair Petrie Beckinsale
Hubert Saint-Macary Conde de Verchemont
Mathew Zajac Hector Duncan
Willian McBain Angus
Robin Smith Douglas
Ron Donarchie Sir Walter Stephenson
2. ANÁLISE
O filme apresenta o confronto entre a Grã-Bretanha vitoriana e os pigmeus africanos, que é apresentado como o elo entre o homem e o símio, a partir de uma visão de sua própria cultura, que segundo Montaigne “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”.
Uma expedição em 1870 à inexplorada África Equatorial, organizada pelo ambicioso cientista escocês Jamie Dodd e pela viúva aventureira Elena van den Ende, captura, junto com animais selvagens para zoológicos europeus, um casal de pigmeus, que enfrentam uma dura viagem pelo até a Grã-Bretanha, onde são estudados por Jamie, Fraiser e Alexander, que acreditam na teoria de que os pigmeus representassem um elo entre o homem e o macaco. A base de estudo foi fixada nas terras de Fraiser, onde trancafiaram os pigmeus em jaulas.
Para entender melhor, o filme e o texto de Michel de Montaigne, temos que revisitar o cenário do século XIX e suas crenças cientificas. Os cientistas acreditavam que o berço da humanidade era a África, de tal forma que lá deveria ter um elo perdido, um humanóide que ligaria o símio ao homo sapiens. Os africanos, neste contexto, eram vistos como inferiores, até porque só podem julgar a verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos (Montaigne).
Os cientistas começaram seus estudos por medições, ao qual eram feitas analogias ao formato craniano, tamanho do cérebro, estatura, sexualidade. Eles já partiram do pressuposto que os dois pigmeus eram de uma raça muito primitiva, basicamente motivada por instintos e com inteligência amplamente inferior a do homem moderno – homem da metade do século XIX -, baseados na teoria da evolução de Darwin, da qual o homem evoluiu do macaco.
Para Montaigne, a essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem, e dessa forma, quando apresentados, os pigmeus, a Academia de Ciência de Edimburgo, Fraiser e Alexander, provam sua teoria do “elo vivo” entre os homens e os macacos, rebatem a tese de Jamie, que toma consciência que Toko e Likola, são tão humanos quanto eles, por serem capazes de demonstrar sentimentos e raciocínio e serem fisiologicamente iguais ao homem moderno – contexto do século XIX -, sendo a diferença encontrada na cultura e na civilização.
Porque os homens descritos não conseguiam enxergar que a sociedade pudesse subsistir com tão poucos artifícios, como a sociedade de Toko e Likola, tal qual descreve Michel de Montagne, ‘(...) é um país, onde não há comercio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas ai são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo”.
Quando Jamie prova sua teoria, Fraiser e Alexander não conseguem ver acima de seus dogmas e tentam se apoderam do bebê de Likola para estudo, o que é impedido por Jamie e seu patrocinador, e pela ira de Toko, que ataca Alexander em sinal de vingança, tentando defender o que lhe é conhecido, Likola e seu bebê. Porém acaba morto pela fúria dos homens, que igualmente a Toko, julgam moralmente a traição, a deslealdade, a tirania e a crueldade dos atos.
28 de out. de 2008
FIichamento do Livro a Idade Medieval: Nascimento do Ocidente
APRESENTAÇÃO
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O período entre os séculos IV e XVI é tradicionalmente conhecido por Idade das Trevas, Idade da Fé ou, com mais freqüência, Idade Média. Todos eles rótulos pejorativos, que escondem a importância daquela época na qual surgiram os traços essenciais da civilização ocidental. Nesta, mesmo países surgidos depois daquela fase histórica - caso do Brasil - têm muito mais de medieval do que à primeira vista possa parecer. Olhar para a Idade Média é estabelecer contato com coisas que nos são ao mesmo tempo familiares e estranhas, é resgatar uma infância longínqua que tendemos a negar mas da qual somos produto. De fato, para o homem do Ocidente atual compreender em profundidade a Idade Média é um exercício imprescindível de autoconhecimento.
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O período entre os séculos IV e XVI é tradicionalmente conhecido por Idade das Trevas, Idade da Fé ou, com mais freqüência, Idade Média. Todos eles rótulos pejorativos, que escondem a importância daquela época na qual surgiram os traços essenciais da civilização ocidental. Nesta, mesmo países surgidos depois daquela fase histórica - caso do Brasil - têm muito mais de medieval do que à primeira vista possa parecer. Olhar para a Idade Média é estabelecer contato com coisas que nos são ao mesmo tempo familiares e estranhas, é resgatar uma infância longínqua que tendemos a negar mas da qual somos produto. De fato, para o homem do Ocidente atual compreender em profundidade a Idade Média é um exercício imprescindível de autoconhecimento.
Abaixo apresentamos uma resenha textual.
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FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade média: nascimento do ocidente. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001.
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Introdução: O (Pré)Conceito De Idade Média
Falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos momentos passados, foi o século XVI que elaborou tal conceito, um desprezo não disfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antigüidade Clássica e o próprio século XVI.
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A Idade Média Para Os Renascentistas E Iluminista
O italiano Francesco Petrarca (1304-1374) já se referira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas.
A arte medieval, por fugir aos padrões clássicos, também era vista como grosseira daí o grande pintor Rafael Sanzio (1483-1520) chamá-la de “gótico”, termo então sinônimo de “bárbara”.
O sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média” teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, também para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição.
O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuaram o menosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da nobreza e do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razão, censurava, sobretudo a forte religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de que a Igreja então desfrutara.
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A Idade Média Para Os Românticos
O Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu, contudo, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto de partida foi à questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do século XIX.
Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média oferecia um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao cientificismo.
Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão preconceituosa quanto à dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois, ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memória histórica. Para aqueles, um período esplêndido, um dos grandes momentos da trajetória humana, algo a ser imitado, prolongado.
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A Idade Média Para O Século XX
Passou-se a tentar ver a Idade Média como os olhos dela própria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Entendeu-se que a função do historiador é compreender, não a de julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média.
Ao examinar qualquer período do passado, o estudioso necessariamente trabalha com restos, com fragmentos — as fontes primárias, no jargão dos historiadores — desse passado, que portanto jamais poderá ser integralmente reconstituído. Ademais, o olhar que o historiador lança sobre o passado não pode deixar de ser um olhar influenciado pelo seu presente.
O período que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não mais “antiga” e ainda não claramente “medieval”. Apesar disso, talvez seja melhor chamá-la de Primeira Idade Média do que usar o velho rótulo de Antigüidade Tardia, pois nela teve início a convivência e a lenta interpenetração dos três elementos históricos que comporiam todo o período medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade Média: herança romana clássica, herança germânica, cristianismo.
Nesse mundo em transformação, a penetração germânica intensificou as tendências estrutural anteriores, mas sem alterá-las. Foi o caso da pluralidade política substituindo a unidade romana, da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia seu caráter mediterrânico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a articulação entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas sociedades forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval.
Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade Média (meados do século VIII - fins do X). Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade política com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas tendências centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal.
Graças a esse temporário encontro de interesses entre a Igreja e o Império, ocorreu certa recuperação econômica e o início de uma retomada demográfica. Iniciou-se então a expansão territorial cristã sobre regiões pagãs — que se estenderia pelos séculos seguintes — reformulando o mapa civilizacional da Europa.
A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou foi, grosso modo, a época do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta à crise geral do século X. A sociedade cristã ocidental conheceu uma forte expansão populacional c uma conseqüente expansão territorial, da qual as Cruzadas são a faces mais conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produção cultural acompanhou essa tendência nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências. Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Média, daí ter merecido em todos os capítulos deste livro uma maior atenção.
A Baixa Idade Média (século XIV - meados do século XVI) com suas crises e seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento.
Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, e com ele nossos conhecimentos sobre o período. Sua infância e adolescência cobriram boas parte de sua vida (séculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas são comparativamente poucas.
Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (século XIV-XVI) deixaram, pelo contrário, uma abundante documentação.
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A Idade Media Para Os Medievais
As primeiras sociedades só registravam o tempo biologicamente, sem transformá-lo em História, portanto sem consciência de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas, viver no real era viver segundo modelos extra-humanos, arquetípicos. Assim, tanto o tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) só existiam por reproduzir atos ocorridos na origem dos tempos.
Tal concepção sofreu sua primeira rejeição com o judaísmo, que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos arquetípicos, mas uma personalidade que intervém na História. O cristianismo retornou e desenvolveu essa idéia, enfatizando o caráter linear da História, com seu ponto de partida (Gênese), de inflexão (Natividade) e de chegada (Juízo Final).
Pelo menos até o século XII os medievos não sentiam necessidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava e acentuava a falta de um conceito claro sobre sua própria época. De maneira geral, prevalecia o sentimento de viverem em “tempos modernos”, devido à consciência que tinham do passado, dos “tempos antigos”, pré-cristãos. Estava também presente a idéia de que se caminhava para o Fim dos Tempos, não muito distante.
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Capitulo I – As Estruturas Demográficas
O surgimento da Demografia Histórica, há menos de cinco décadas, enriqueceu consideravelmente o arsenal do historiador na sua tarefa de compreensão do passado.
A Idade Média estava na etapa que os especialistas chamam de Antigo Regime Demográfico, típico das sociedades agrárias, pré-industriais: alta taxa de natalidade e alta taxa de mortalidade. Em razão disso, a conjugação de certos fatores (estiagens, enchentes, epidemias etc.) por poucos anos seguidos alterava o quadro demográfico ao elevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo contrário, a ausência de eventos daquele tipo rapidamente produzia um saldo populacional positivo.
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Retratação Da Primeira Idade Media
Do ponto de vista demográfico, a primeira fase medieval foi um prolongamento da situação do Império Romano, cuja população conhecera um claro recuo desde o século II. Com a crescente desorganização do aparelho estatal romano, foram rareando as importações de gêneros alimentícios que tinham por séculos permitidos a existência de uma grande população urbana. As cidades começaram a se esvaziar, cada região tentou passar a produzir tudo àquilo de que necessitasse, Tal fenômeno paradoxalmente aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para que a mortalidade naquele local rapidamente se elevasse, devido às dificuldades em obter alimentos em outras regiões.
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A Relativa Ocupação Da Alta Idade Média
Por meio de indícios esparsos na documentação — de interpretação problemática — indica certa retomada demográfica na segunda metade do século VIII. Esse fato talvez esteja ligado à reorganização promovida pelos Carolíngios, e talvez ajude mesmo a explicar a expansão territorial realizada por Carlos Magno. Contudo, essa recuperação foi desigual no
tempo e no espaço. Em muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade continuavam acentuadas.
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A Expansão Da Idade Media Central
Apesar da inexistência de uma documentação quantitativa, é inquestionável aquele crescimento na Idade Média Central, como se percebe por cinco claros indícios: um acentuado movimento migratório; o movimento de arroteamentos, que fazia recuar as florestas, os terrenos baldios, as zonas pantanosas; aumento do preço da terra e do trigo; acentuado crescimento da população urbana naquele período; transformações sofridas pela arquitetura religiosa.
Todos esses testemunhos apontam, portanto, para um forte crescimento demográfico entre os séculos XI e XIII, mas é extremamente difícil quantificá-lo. De maneira geral, a documentação medieval fornece poucos dados populacionais que permitem um tratamento estatístico.
Portanto, mesmo sem se poder quantificar com maior rigor e precisão a expansão demográfica da Idade Média Central, ela é inegável. Naquele período dois fatores que anteriormente elevavam a mortalidade tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles foi à ausência de epidemias, com o recuo da peste e da malária, continuando apenas a lepra a ter certa intensidade.
O segundo fator a considerar é o tipo de guerra, que não envolvia grandes tropas de combatentes anônimos, como nas legiões romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros.
Guerra feudal não objetivava a morte do adversário, apenas sua captura. Como uma das obrigações vassálicas era pagar o resgate do senhor aprisionado, c como na pirâmide hierárquica feudal quase todo nobre, além de ser vassalo de outros, tinha seus próprios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um rendimento proporcional à importância do prisioneiro.
Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica medieval foi à suavização do clima. Na Europa ocidental o clima tornou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre 750 e 1215. A viticultura pôde então expandir-se em regiões anteriormente impróprias, como a Inglaterra. A paisagem de alguns locais foi alterada e humanizada, como a Groenlândia, que fazia jus a seu nome (literalmente, “terra verde”) e apenas no século XIII, em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em sua direção, tornando-se inóspita.
O período mais quente e seco não apenas transformou determinadas áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para dificultar a difusão da peste.
Por último, ajuda a explicar o crescimento populacional dos séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de inovações nas técnicas agrícolas. Dentre os aperfeiçoamentos técnicos da época, três exerceram uma ação direta sobre a elevação da produtividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada e o sistema trienal.
As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualidade. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque, baseada em cereais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas proteínas e vitaminas. A alteração então ocorrida na dieta talvez explique a mudança na proporção entre população masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda posteriormente.
Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher.
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O Ressurgimento Da Peste Na Baixa Idade Media
O crescimento populacional acabou por se revelar excessivamente elevado para as condições européias de então. Durante o auge daquele fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de menor fertilidade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a produtividade média e desestabilizando o frágil equilíbrio produção-consumo.
O aumento populacional tinha implicado a derrubada de grandes extensões florestais, já que a madeira era o principal combustível e material de construção. Isso ajuda a explicar as chuvas torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior parte da Europa ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação florestal.
Em Antuérpia, importante centro distribuidor de cereais, o trigo subiu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade de vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias agravavam a situação. Impulsionada pela fome, muita gente vagava em busca do que comer, levando consigo as epidemias e a desordem.
A crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu ponto crucial no ressurgimento da peste, então conhecida por peste negra. Ela apresentava-se de duas formas. A bubônica (assim chamada por provocar um bubão, um inchaço) tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem dela) de 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas. A peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma letalidade de 100%, fazendo suas vítimas depois de apenas dois ou três dias de contraída a doença.
Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a todos. Até 1670, a Europa foi atingida todo ano. No período crítico, o da chamada peste negra, em 1348-1350, as perdas humanas variaram, conforme a região, de dois terços a um oitavo da população.
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Capitulo II – As Estruturas Econômicas
O prestígio ímpar que a História Econômica desfrutou por longo tempo deixou profundas marcas na produção medievalística. Sobretudo porque a impossibilidade de realizar estudos quantitativos como os que eram feitos para períodos históricos mais recentes, levou ao desenvolvimento de metodologias próprias. A historiografia especializada desenvolveu então trabalhos baseados no qualitativo (indícios, tendências, características), que elucidam melhor a economia medieval do ponto de vista da própria época.
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Retração E Estagnação Até O Século X
Do ângulo econômico, os séculos IV-X caracterizou por uma pequena produtividade agrícola e artesanal, conseqüentemente uma baixa disponibilidade de bens de consumo e a correspondente retração do comércio e portanto da economia monetária. Paralelamente, existiam pequenas e médias propriedades, ainda que aos poucos elas fossem absorvidas pelas villae. De qualquer forma, estas são mais bem conhecidas e predominavam naquele território que era o centro de gravidade de então, daí porque seja justificável falar em economia agrária dominial.
Esta girava em torno da divisão da área em duas partes. A primeira, chamada na época de terra indominicata (ou de reserva senhorial pelos historiadores), era explorada diretamente pelo senhor. Ali estava sua casa, celeiros, estábulos, moinhos, oficinas artesanais, pastos, bosques e terra cultivável. A segunda parte era a terra mansionaria, ou seja, o conjunto de pequenas explorações camponesas, cada uma delas designada pelos textos a partir do século VII por mansus. Cada manso era a menor unidade produtiva e fiscal do domínio. Dele uma família camponesa tirava sua subsistência, e por ter recebido tal concessão devia certas prestações ao senhor. Os mansi serviles, ocupados por escravos, deviam encargos mais pesados que os mansi ingenuiles, possuídos por camponeses livres.
Apesar de o fundamento da economia dominial estar na prestação de serviço na reserva senhorial por parte de camponeses livres mas dependentes, não se pode esquecer da mão-de-obra escrava. Tudo indica que a escravidão ainda era praticada em boa parte do Ocidente cristão, especialmente na Inglaterra, Alemanha, Itália e Catalunha. Mas é inegável que se generalizava então à figura dos servi casati, escravos estabelecidos e fixados num pedaço de terra. Dessa forma a própria palavra servus (escravo) passou a designar outra realidade jurídica, expressando aquela transformação socioeconômica — a do servo.
A produção dos domínios não apresentava grandes novidades em relação à agricultura da Antigüidade. A terra era trabalhada quase sempre no sistema bienal ou trienal.
O setor secundário ressentia-se da fraqueza demográfica e da medíocre produção agrícola. O primeiro fator roubava-lhe mão-de-obra e especialmente consumidores. O segundo limitava o fornecimento de matérias-primas. O artesanato dos séculos IV-X estava concentrado nos domínios, que com sua tendência à auto-suficiência procurava produzir ali mesmo tudo que fosse possível. A mão-de-obra era predominantemente escrava, vivendo na terra indominicata daquilo que o senhor lhe entregava, trabalhando nas oficinas com ferramentas e matérias-primas fornecidas por ele. A partir do século VIII havia também um pequeno grupo de artesãos assalariados, que se deslocavam de domínio em domínio.
O artesanato urbano, por sua vez, estava limitado pelas condições das cidades da época.
O setor terciário limitava-se praticamente ao comércio.
O comércio interno também se viu limitado, mas não paralisado. Se as dificuldades de produção, de um lado, restringiam as trocas por gerar poucos excedentes, de outro lado tornavam necessário que uma região com problemas temporários procurasse determinados produtos básicos em outras. Quando um domínio tinha certo excedente, ele era comercializado, diante da impossibilidade de se estocar.
Das três funções atribuídas à moeda, apenas uma foi importante naquele período. Primeiramente, ela é instrumento de medida de valor, ou seja, um padrão para medir o valor de bens e serviços adquiríveis, simplificando a relação pela qual determinada mercadoria pode ser trocado por outra. Em segundo lugar, a moeda é instrumento de troca, porque, não sendo ela própria consumível, pode, graças à sua aceitabilidade geral, servir de intermediária entre bens que se quer trocar. Por fim, ela é instrumento de reserva de valor, já que sem perder as funções anteriores pode ser guardada para a qualquer momento satisfazer certas necessidades. Este papel da moeda foi acentuado nos séculos IV-X devido à pequena disponibilidade de bens.
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O Crescimento Dos Séculos XI-XIII
A Idade Média Central conheceu importantes mudanças, a passagem da agricultura dominial para a senhorial. Havia dois tipos básicos delas, ambas de concessão pouco onerosa para o camponês, a censive e a champart. Na primeira, mais comum e difundida, em troca do usufruto da terra o camponês devia uma pequena renda fixa, o censo, pago em dinheiro ou em espécie. Na tenência champart (de campi pars, “parte da colheita”), a renda devida pelo camponês ao senhor não era fixa, mas proporcional ao resultado da colheita. De maneira geral, a taxa era de 10% na triticultura, de 16% a 33% na viticultura e na criação.
Não só os lotes camponeses viram sua área diminuir na Idade Média Central. A reserva senhorial também se viu reduzida em razão de vários fatores. Primeiro, a necessidade de criação de novas tenências camponesas, o que apenas o desmembramento dos mansos não fazia na quantidade desejada. Segundo, o progresso das técnicas agrícolas permitia ao senhor obter maior produção com menos terra. Terceiro, os rendimentos senhoriais vinham então bem mais do exercício dos direitos de ban do que da exploração direta do solo (daí as baixas exigências feitas aos camponeses em troca de suas tenências). Quarto, na nova ordem social que se implantava desde fins do século X — o feudalismo — para estabelecer relações de vassalagem o senhor cedia terras sob forma de feudo.
Não se deve, portanto, confundir senhorio e feudo. O primeiro era a base econômica do segundo, este a manifestação político-militar daquele. O senhorio era um território que dava a seu detentor poderes econômicos (senhorio fundiário) ou jurídico-fiscais (senhorio banal), muitas vezes ambos ao mesmo tempo. O feudo era uma cessão de direitos, geralmente mas não necessariamente sobre um senhorio. Havia regiões senhorializadas e não feudalizadas (como a Sardenha), mas não existiam regiões feudalizadas sem ser senhorializadas.
Em razão disso, o regime de mão-de-obra também se modificou em relação ao da agricultura dominial. A escravidão praticamente desapareceu no norte europeu, sobrevivendo apenas em algumas regiões mediterrânicas. O segmento de trabalho assalariado expandiu-se, em especial no século XII, graças ao barateamento da mão-de-obra resultante do aumento populacional. O servo tornou-se o principal tipo de trabalhador, complementando um processo bem anterior.
Em muitas regiões difundiu-se a prática de transformar a obrigação de serviços em pagamento monetário, com o qual o senhor contratava assalariados, cujo trabalho rendia o dobro do servil.
A produção cresceu em virtude de uma maior quantidade de mão-de-obra (incremento demográfico) trabalhando sobre uma área mais extensa (desbravamento de florestas e terrenos baldios). Mas também graças à difusão de diferentes técnicas: sistema trienal, charrua, força motriz animal, adubo mineral, moinho de água, moinho de vento.
Uma segunda transformação importante ocorrida nos séculos XI-XIII foi possibilitada pela existência de um excedente agrícola, o revigoramento do comércio. Este passou a desempenhar um papel central na vida do Ocidente, com repercussão muito além da esfera econômica.
Uma terceira transformação econômica da Idade Média Central, podemos chamar de Revolução Industrial medieval. Seu ponto de partida foi o crescimento demográfico e comercial, fomentador do desenvolvimento urbano. Estimuladas pela chegada de camponeses que conseguiam romper os laços servis, as cidades localizadas próximas a rios ou estradas freqüentadas por comerciantes logo começaram a crescer.
Com presença mais ou menos generalizada, sem dúvida as duas maiores indústrias medievais foram a da construção e a têxtil. A primeira delas beneficiou-se não só do crescimento populacional, mas também da prática social ostentatória que levava o clero e a aristocracia laica a construir cada vez mais e maiores igrejas, mosteiros, castelos. Buscando superar sua origem humilde, também a burguesia freqüentemente erguia construções imponentes.
A produção industrial nas cidades estava organizada em associações profissionais que chamamos de corporações de ofício, conhecidas na Idade Média apenas por “ofícios” (métiers na França, ghilds na Inglaterra, Innungen na Alemanha, arti na Itália). Suas origens são controvertidas, mas as razões para o agrupamento são claras: religiosa, daí muitas vezes ter derivado de confrarias, isto é, de associações que desde o século X existiam para cultuar o santo patrono de uma determinada categoria profissional e para praticar caridade recíproca entre seus membros; econômica, procurando garantir para eles o monopólio de determinada atividade; político-social, com a plebe de artesãos tentando se organizar diante do patriciado mercador que detinha o poder na cidade.
Em cada oficina o mestre trabalhava com alguns outros artesãos. Os jornaleiros (ou companheiros) eram assalariados que ganhavam em dinheiro e em espécie, pois viviam na casa do mestre. Os aprendizes, apenas um ou dois por oficina, eram adolescentes que procuravam iniciar-se nos segredos da profissão, vivendo para isso ao lado do mestre e pagando a ele pelo aprendizado, pelo alojamento e pela alimentação.
Outra importante transformação ocorrida na Idade Média Central foi uma acentuada monetarização da economia. Um primeiro problema era a grande diversidade, de moedas senhoriais, cada uma delas circulando numa área restrita. Um segundo problema era o baixo valor das espécies, resultado da reforma monetária carolíngia do século VIII, que implantara o monometalismo de prata: o denarius, moeda de pequeno valor, adequava-se melhor àquela economia pouco produtiva e de lenta circulação.
De um lado, a solução veio do fortalecimento do poder monárquico que então começava a ocorrer. De outro, os metais preciosos que tinham sido entesourados foram aos poucos reentrando em circulação. Graças à expansão mercantil, entre início do século XII e meada do século XIII um afluxo de ouro muçulmano contribuiu para alargar o estoque metálico ocidental. Graças às novas técnicas de mineração, cresceu bastante a produção de prata da Europa central.
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O Pré-Capitalismo Medieval
Em suma, a Idade Média Central foi uma época de mudanças, de expansão econômica, o que levou parte da historiografia por muito tempo a falar num “capitalismo medieval”. Contudo, adotando-se uma definição ampla de capitalismo sistema econômico centrado na posse privada de capital (mercadorias, máquinas, terras, dinheiro, conhecimento técnico) empregado de maneira a se reproduzir continuamente, ficando os desprovidos dele obrigados a vender sua força de trabalho — poderíamos talvez aceitar sua existência nos últimos séculos da Idade Média. Ele coexistia com o sistema doméstico, representado por pequenos artesãos independentes, e com o sistema senhorial, baseado em mão-de-obra dependente.
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A Depressão De Fins Da Idade Média
A Baixa Idade Média, por fim, inaugurou um período de crise generalizada, facilmente perceptível no aspecto econômico. Sem dúvida, podemos afirmar que após uma fase A de crescimento econômico (1200-1316) a Europa ocidental entrou numa fase B depressiva, que se estenderia até fins do século XV no sul e princípios do XVI no centro e no norte.
De qualquer forma, a crise resultou dos próprios princípios da economia extensiva e predatória da fase A. ela fundamentava-se em N (recursos naturais) e T (força de trabalho) abundantes, e um K (capital) proporcionalmente pequeno. Ou seja, enquanto ainda havia terras férteis disponíveis e mão-de-obra em quantidade para trabalhá-las, o sistema funcionou bem. Mas a riqueza social global pouco crescia por falta de reinvestimento. Logo, como N e T não poderiam crescer indefinidamente, mais cedo ou mais tarde viria à crise.
No setor primário, a produção era relativamente estática (limites técnicos da agricultura medieval) e o consumo dinâmico (crescimento populacional). No setor secundário, cada indivíduo gastava mais com alimentação e menos no consumo de bens industriais. O setor terciário ressentiu-se disso tudo, ocorrendo uma redução da margem de lucro tanto das atividades comerciais quanto das financeiras.
Uma das maiores fragilidades e fonte de graves problemas econômicos eram as constantes mutações monetárias empreendidas pelos soberanos. Sempre necessitados de dinheiro, os monarcas diminuíam a proporção de metal precioso das moedas e mantinham seu valor nominal, cunhando assim um maior número de peças com a mesma quantidade de metal nobre.
As causas dessa política monetária eram várias. Uma, as necessidades geradas pela guerra, pela própria retração comercial, a escassez metálica, a lentidão da circulação monetária, da procura, por fim, o entesouramento.
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Capítulo III - As estruturas políticas
Por muito tempo a História Política teve seus estudos voltados apenas para a camada dirigente. O primeiro passo na direção dessa Nova História Política foi dado em 1924 por Marc Bloch com uma obra tão pioneira, Os reis taumaturgos. Desde então, nessa sua nova roupagem, a História Política não se preocupa mais em descrever dinastias, reinados e batalhas. Ela coloca a ênfase em dois principais campos de estudo, o papel do imaginário na política e as relações entre nação e Estado.
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Política e imaginário
Seguindo os antropólogos, sociólogos e politicólogos, os historiadores passaram a ver a política como à forma básica de organização de qualquer grupo humano, como o instrumento minimizador dos conflitos inerentes a toda sociedade.
De fato, nas sociedades arcaicas, com visão monista do universo, sem fazer distinção entre natural e sobrenatural, indivíduo e sociedade, a realeza desempenhava um papel harmonizador, integrador do homem no cosmos. Na Idade Média o monarca, sem ser deus ou sequer sacerdote, como nas civilizações da Antigüidade, tinha inquestionável caráter sagrado.
Todo rei para ser visto como tal precisava ser submetido ao rito da unção com óleo, sacralizava o monarca, tornava-o um eleito de Deus.
Outros interessantes exemplos das relações entre política e imaginário têm nos reis, históricos ou míticos, que teriam desaparecido sem morrer e que retornariam quando seus povos deles precisassem. A crença nesses monarcas messiânicos e milenaristas tanto podia legitimar seus sucessores quanto servir de contestação ao governante do momento.
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Nação e Estado
Pelo menos até o século X, “nação” tinha conotação apenas étnica: natione vem de “nascimento”. Na Primeira e na Alta Idade Média, prevaleceu o princípio jurídico germânico da personalidade das leis, quer dizer, cada pessoa era regida pelos costumes de seu povo independentemente do lugar em que estivesse. O princípio jurídico romano da territorialidade das leis, ou seja, a submissão aos costumes locais, qualquer que fosse a origem da pessoa, reganharia força aos poucos, sobretudo a partir do século XII. Somente então “nação” passou a ter caráter também geográfico e político.
No Império Carolíngio alguns fatores permitiram o desenvolvimento de consciências étnicas: a pretensão a certo centralismo administrativo, a conquista de novos territórios, o progresso dos falares locais diante do recuo do latim. A fragmentação do império em 843 expressava e reforçava aquela situação, estimulando a formação dos nacionalismos nos séculos seguintes.
A evolução do Estado medieval não é menos problemática. Apesar de a palavra existir desde o latim clássico (no qual status significa “modo de ser”, “estado”), apenas a partir de meados do século XIII ela começou a ganhar o sentido atual de corpo político submetido a um governo e a leis comuns, e somente em fins do século XV essa acepção tornou-se usual. O Estado-nação progrediria na Baixa Idade Média, tanto no plano prático (exércitos nacionais, protecionismo econômico) quanto no simbólico (surgimento das bandeiras, do conceito de fronteira).
No século IX, restabeleceu-se uma relativa unidade com o Império de Carlos Magno, que absorveu, mas não eliminou outros reinos formados no período anterior. Nos séculos X-XIII, o Império tornou-se apenas uma ficção, uma idealização, pois na prática ocorria uma profunda fragmentação política substantivada nos feudos, porém limitada pelos laços de vassalagem, que permitiriam às monarquias recuperar aos poucos seus direitos. Nos séculos XIV-XVI, o processo de revigoramento das monarquias acelerou-se, estimulado pela crise global que fazia a sociedade depositar suas esperanças de recuperação no Estado.
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A fragmentação da Primeira Idade Média
A crise do século III já mostrara a fraqueza das instituições políticas romanas. As lutas pelo trono eram freqüentes; -, as intervenções militares também. Cada exército provincial pretendia dar o título imperial ao seu comandante para obter maiores vantagens: naquele período de “anarquia militar”.
As reformas políticas de Diocleciano e Constantino repuseram em mãos imperiais um grande poder, porém suas reformas sociais e econômicas indiretamente e em longo prazo anularam aquela recuperação. Os latifundiários não só se tornavam mais ricos como passavam aos poucos a ter atribuições estatais dentro de suas propriedades. A cada vez mais constante penetração de germânicos em território romano gerava uma insegurança que reforçava aquela tendência. O Estado ia perdendo as possibilidades de uma atuação efetiva. Ocorria um claro processo de desagregação política.
Os germanos não tinham nem Estado nem cidades, sendo a tribo e a família as células básicas de sua organização política. As relações sociais entre eles não se regiam pelo conceito de cidadania, mas de parentesco. Assim, ao se sedentarizarem, ocupando cada tribo uma parcela do Império Romano, eles vieram a substituir um Estado organizado e relativamente urbanizado. Não tendo instituições próprias para desempenhar tal tarefa, adotaram as que estavam à mão, e que bem ou mal tinham funcionado por longo tempo. O rei ostrogodo Teodorico (474-526) pensou numa espécie de confederação germânica sob o domínio de seu reino. A idéia de uma confederação germânica não era absurda, mas precoce, na época de Teodorico.
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A renovação imperial carolíngia
As condições para tanto estariam reunidas apenas no reino franco do século VIII, na figura de Carlos Magno. Em primeiro lugar, pelo fato de ele ter a anuência da Igreja para dar aquele passo. Em segundo lugar, as relações do Ocidente com Bizâncio estavam bastante abaladas naquele momento, de forma que não havia a preocupação dos três séculos anteriores em respeitar os direitos bizantinos.
O território estava dividido em centenas de condados, de extensão variável, cada um deles dirigido por um conde, nomeado pelo imperador. O conde representava o poder central em tudo, publicando as leis e zelando pela sua execução, estabelecendo impostos, dirigindo trabalhos públicos, distribuindo justiça, alistando e comandando os contingentes militares, recebendo os juramentos de fidelidade dirigidos ao imperador. Em troca recebia uma porcentagem das taxas de justiça e, sobretudo terras entreguem pelo soberano.
Essa prática revelou-se insuficiente para superar a fraqueza estrutural do Império Carolíngio, o que levou, em 843, à sua fragmentação por meio do Tratado de Verdun, assinado entre três netos de Carlos Magno. Nele aparecia o primeiro esboço do futuro mapa político europeu. O tratado estabeleceu dois grandes blocos territoriais, étnicos e lingüísticos (dos quais surgiriam às futuras França e Alemanha) e uma longa faixa pluralista, composta de uma zona de personalidade definida (Itália do norte), zonas multilingüistas que sofreriam o poder de atração daqueles primeiros blocos (futuras Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Suíça), zonas intermediárias que seriam objeto de longas disputas (Alsácia, Lorena, Trieste, Tirol).
O fato de o Império não ter unidade orgânica, assentando-se sobre dois princípios contraditórios: o universalismo das tradições romana e cristã e o particularismo tribal germânico. A diversidade étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito sujeita a flutuações conforme a personalidade do soberano. Um segundo fator foi à difusão da vassalagem, por meio da qual Carlos Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num vínculo que manteria o predomínio imperial. A relação vassálica implicava, porém, a entrega por parte do soberano de terras e privilégios políticos que na verdade o enfraqueciam. Naquela economia essencialmente agrária, ao ceder terras para os nobres o imperador precisava conquistar novas áreas, mas para tanto dependia do serviço militar daqueles mesmos elementos. Surgia um círculo vicioso difícil de ser rompido.
Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão do poder temporal e do poder espiritual na figura do imperador. No seu papel militar, pela tradição germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro e obtentor de pilhagens; no seu papel religioso, pela tradição cristã, ele deveria ser o mantenedor da paz e da justiça. Frágil equilíbrio.
O imperador fez com que a expansão cristã fosse realizada por intermédio de missões religiosas, e não mais de conquistas militares. O soberano ficou assim privado dos proventos da pilhagem, de forma que precisava remunerar os vassalos com suas próprias terras, esgotando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu poder.
Por fim, as novas invasões dos séculos IX-X contribuíram para mostrar a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vikings, que descendo da Escandinávia penetravam pelos rios com seus barcos leves e ágeis, não permitia a defesa por parte daquele exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras militares. Ficava patente a impotência dos soberanos, e cada região organizava sua própria defesa, em torno da nobreza local. Era a região, portanto, que passava a definir seu próprio destino. A Europa cobria-se de castelos. O poder se fragmentava.
A partir de então, estavam presentes os personagens políticos que se manteriam em cena até o fim da Idade Média: o Império, a Igreja, as monarquias, o feudalismo e — um pouco mais tarde — as comunas.
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Os poderes universalistas
Por causa de problemas dinásticos, tal título deixou de ser utilizado de 924 a 962, quando se deu a chamada “segunda renovação do Império”, com Oto. Depois de ter consolidado seu poder no reino alemão, ele derrotou os magiares e eslavos, pacificando aquela região e ganhando um prestígio muito grande em toda a Cristandade*. Intervindo na política italiana, ele casou-se com a herdeira do trono daquele território e proclamou-se rei também ali. O papa, precisando de ajuda para superar problemas na Itália central, buscou seu apoio. Enfim, Oto I conseguiu reunir todas as condições para ser coroado imperador pelo pontífice. Renascia o Império Franco, que em 1157 passou a se chamar Santo Império e a partir de 1254, Santo Império Romano Germânico.
O Império resultava da reunião de três coroas, da Alemanha, da Itália e da Borgonha. E o monarca era fraco em todas. Na Alemanha, feudalizada tardiamente no século XII, a prática feudal não trabalhava a favor do Estado, como ocorria na França: o rei não podia manter os feudos confiscados, sendo obrigado a reenfeudá-los após um ano e um dia. Na Itália, o território era descontínuo, compreendendo o norte peninsular e algumas regiões meridionais, pois o centro era papal e o extremo sul bizantino. Na Borgonha, o poder da nobreza local já era bastante forte quando o reino se tornou em 1033 um Estado autônomo no seio do Império.
Sem poder efetivo nesses reinos, o soberano sempre buscou o título imperial na esperança de com ele reforçar sua atuação naqueles locais. Apenas o papa poderia coroar um imperador, mas não estava interessado na existência de um que fosse forte, pois ele próprio tinha pretensões universalistas, considerando-se o legítimo herdeiro do Império Romano. Daí os sérios conflitos entre Império e Igreja, que se arrastariam por longo tempo.
A Igreja, por sua vez, tornou-se claramente uma personalidade política desde que se corporificou com a Doação de Pepino. Isto é, ao receber do chefe franco em 754-756 os territórios que ele conquistara aos lombardos, nascia o Estado Pontifício. Contudo, tal fato trazia em si uma submissão implícita da Igreja ao poder monárquico, de quem recebia aquelas terras. Contra isso é que se forjou o documento conhecido por Doação de Constantino. Por este texto apócrifo, o imperador romano Constantino teria supostamente transferido para o papado, no século IV, o poder imperial sobre todo o Ocidente. A questão ficava, dessa forma, invertida: Pepino nada estaria doando à Igreja, mas apenas restituindo a ela uma parte do que lhe pertencia. A Igreja, depositária do título imperial, entregara-o ao rei franco por serviços prestados, podendo, portanto, retoma-lo e atribuí-lo a quem quisesse.
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Os poderes nacionalistas
Ao promover a unção de Pepino, em 751, a Igreja justificara o poder monárquico. Em parte isso ocorrera por circunstâncias, já que o papa necessitava do apoio franco contra os lombardos.
Apesar de aceitar a sacralidade monárquica, a Igreja velava para que tal poder não se tornasse excessivo, daí a farta literatura conhecida por “espelho dos príncipes”. Literatura de exortação aos monarcas, de quem se exigiam qualidades cristãs e a quem se estabeleciam limites de atuação.
Esse aspecto contratual vinha dos bárbaros germanos, para quem o rei, eleito, estava de certa forma subordinado ao direito costumeiro da tribo. Este determinava os poderes e atribuições do rei, e naturalmente não podia ser alterado por ele sem o consentimento da comunidade por intermédio da assembléia dos guerreiros. Com o mesmo espírito, no feudalismo o vassalo que não cumpria suas obrigações podia perder seu feudo, depois de julgado por seus pares no tribunal do senhor. Correspondentemente, o senhor que desrespeitava suas obrigações via o vassalo romper o contrato feudo-vassálico (diffidatio). Assim, o rei feudal como suserano mantinha relações contratuais apenas com seus vassalos diretos.
Por outro lado, a partir da própria fragmentação política feudal desenvolvia-se um elemento que acabaria por ter um papel reaglutinador. Os bárbaros tinham possuído certa solidariedade de tribo ou de povo, que, contudo não se associara a um território por causa de seu nomadismo. Com a penetração e fixação em terras do antigo Império Romano, aos poucos surgiram vínculos entre os habitantes, seus costumes, suas tradições e o território ocupado. O primeiro resultado disso é constatável séculos depois, quando em 813 o concilio de Tours recomendava ao clero traduzir os sermões em língua vulgar para que fossem mais bem compreendidos.
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Os poderes particularistas
O feudalismo, do ponto de vista político, representava uma pulverização do poder que respondia melhor às necessidades de uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária (Império Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings, magiares etc). Na verdade, as tendências centrífugas vinham desde o século IV, quando manifestaram e aceleraram o debilitamento do Império Romano. Naquele momento, com a busca da auto-suficiência por parte dos latifúndios, com a insegurança gerada pela penetração dos bárbaros e com as dificuldades nas comunicações, acentuou-se a ruralização da economia e da sociedade, levando os representantes do imperador a se verem limitados nas suas possibilidades de atuação. Os grandes proprietários rurais puderam, assim, usurpar atribuições do Estado.
A formação dos reinos germânicos em nada alterou a essência daquele processo. Naquela economia fundamentalmente agrária, os monarcas remuneravam seus servidores e guerreiros com terras, às quais se concediam muitas vezes imunidades. O detentor da terra desempenhava ali o papel de Estado, taxando, julgando, convocando.
A concessão e recepção de feudos e sua contrapartida (o serviço militar) representavam uma forma de divisão da riqueza (terra e trabalhadores) sempre dentro da mesma elite. O poder político estava fracionado para que pudesse ser mantido.
O surgimento das comunas representou um papel interessante e importante. De um lado, aquele processo negava os princípios feudo-clericais. O tipo mais difundido era a comuna citadina, a comunidade burguesa que se organizava para defender seus interesses comerciais diante dos abusos feudais, como confiscos ou taxações excessivas. No começo do século XI, ela pretendia apenas escapar à arbitrariedade senhorial. Cerca de 100 anos depois, ela passou a buscar autonomia, que se comprava ou arrancava à força, dependendo de cada caso.
Nascia então a verdadeira comuna, ou cidade-estado. Seu modelo acabado estava na Itália, região mais urbanizada do Ocidente, onde as longas lutas entre Império e Igreja tinham criado um vácuo de poder preenchido pelas associações burguesas. As comunas representaram uma novidade política não apenas na sua relação com os poderes tradicionais, mas também na sua organização interna. No primeiro momento seu regime político foi o consulado, com um grupo de funcionários (cônsules) eleitos defendo poderes executivos e judiciais. Para controlá-lo, havia uma assembléia inicialmente formada por todos os cidadãos e depois por certo número deles escolhido por eleição ou sorteio. Num segundo momento, diante das crescentes disputas internas da camada dirigente, passou-se a entregar o poder a uma só pessoa, de fora da cidade e, portanto neutra nos seus conflitos, o podestà (“regedor”).
O grau de autonomia conseguido pelas comunas foi muito variável conforme o tempo, o local e o tipo de associação. E importante lembrar que nem todas as comunas eram urbanas. As rurais, quase sempre muito modestas, nasciam da associação de aldeias contra o seu senhor. O espírito era o mesmo das comunas urbanas, mudavam os objetivos (acesso a áreas fechadas pelo senhor, reação ao desrespeito por costumes locais etc.) e as condições de alcançá-los (mais pobre que a cidade, o campo dificilmente podia comprar sua liberdade).
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O jogo político medieval
Os poderes universalistas (Igreja e Império) estavam em choque constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam — a herança do Império Romano — somente um deles poderia ter sucesso. Assim, ambos fracassaram, permitindo a emergência de poderes particularistas (feudos e comunas) e nacionalistas (monarquias). Mais do que isso, quando ficou patente em fins da Idade Média, que o futuro pertencia a estas últimas, duas nacionalidade já tinham perdido sua oportunidade histórica de organizar Estados centralizados. A luta entre os universalistas debilitara as bases territoriais e nacionais da Itália (centro nevrálgico da Igreja) e da Alemanha (base do Sacro Império).
Dessa forma, por muito tempo elas permaneceram apenas realidades geográficas, não políticas. Perdidas as chances de obter colônias no Novo Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos XVIII-XIX, secundarizadas na partilha da África e da Ásia do século XIX, aquelas nacionalidades sentiam cada vez mais a necessidade de se corporificar politicamente.
Apesar das transformações políticas dos séculos XI-XIII, na Baixa Idade Média os vínculos feudais continuavam a tencionar as relações entre vários Estados: o rei da Inglaterra era vassalo francês, o reino português surgira de uma secessão de Castela, a Escócia estava ligada à Inglaterra, e Flandres à França. Todas essas questões pendentes, ou mal resolvidas, vieram à tona com o grande conflito nacionalista da Idade Média, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Mas esta também envolveu questões feudais internas, pois cada vez mais se restringia o papel social da nobreza, que era cumprido através de guerras locais, proibidas pelas monarquias, daí a necessidade de guerras mais amplas, entre os Estados.
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Capítulo IV - As estruturas eclesiásticas
A linha tendencial da Igreja na Idade Média revela-se com clareza. Num primeiro momento, a organização da hierarquia eclesiástica visava à consolidação da recente vitória do cristianismo. A seguir, a aproximação com os poderes políticos garantiu à Igreja maiores possibilidades de atuação. Em uma terceira fase, o corpo eclesiástico separou-se completamente da sociedade laica e procurou dirigi-la, buscando desde fins do século XI erigir uma teocracia que esteve em via de se concretizar em princípios do século XIII.
Contudo, por fim, as transformações que a Cristandade conhecera ao longo desse tempo inviabilizaram o projeto papal e preparou sua maior crise, a Reforma Protestante do século XVI.
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A formação da hierarquia eclesiástica na Primeira Idade Média
Nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa contradição, que, no entanto se revelaria a base de seu poder na Idade Média. Ao negar diversos aspectos da civilização romana, ela criava condições de aproximação com os germanos. Ao preservar vários outros elementos da romanidade, consolidava seu papel no seio da massa populacional do Império.
Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos poucos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século IV, identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religião oficial. A Igreja passava a ser a herdeira natural do Império Romano.
Para tanto, ela precisava ter sua própria hierarquia, realizando e supervisionando os ofícios religiosos, orientando quanto às questões de dogma, executando obras sociais, combatendo o paganismo. A concentração de todas essas atividades nas mãos de apenas alguns cristãos era aceita com naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que tal poder lhes fora atribuído pela própria Divindade: segundo o texto bíblico.
Apenas no século IV determinou-se que somente homens livres poderiam ingressar no clero, e proibiu-se a passagem direta do laicato para o episcopado, tornando-se necessário exercer antes uma função inferior. O sustento do clero advinha das esmolas dadas pelos fiéis, de acordo com o princípio de “quem serve ao altar vive do altar”. O celibato não era obrigatório, apenas recomendado, tendo surgido à primeira legislação a respeito na Espanha, onde o sínodo de Elvira em 306 proibiu o casamento aos clérigos sob pena de destituição.
Para a formação e organização da hierarquia eclesiástica acabou contribuindo bastante, paradoxalmente, um elemento que punha em risco a própria existência da Igreja: as heresias. Estas eram produto do sincretismo que fazia a força, mas também a fraqueza do cristianismo. Ao reunir e harmonizar componentes de várias crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível de interpretações discordantes do pensamento oficial do clero cristão. Do ponto de vista deste, heresia era, portanto, um desvio dogmático que colocava em perigo a unidade de fé.
Qualquer idéia que parecesse herética era, então, submetida à apreciação do bispo local. Este geralmente colocava a questão perante seus pares nas assembléias episcopais, ou sínodos, que se reuniam desde meados do século II para tratar de tudo que interessasse à Igreja local. Mas as questões de doutrina eram debatidas, sobretudo nos concílios ecumênicos, que congregavam bispos de todas as regiões, expressando a universalidade da Igreja.
Paralelamente a esse clero voltado para atividades em sociedade — ministrar sacramentos, orientar espiritualmente, ajudar os necessitados — e por isso chamado de clero secular, surgia um de características diversas. Era constituído por indivíduos que buscavam servir a Deus vivendo em solidão, ascese e contemplação: os monges, do grego monakbos, “solitário”.
A tradicional trilogia monástica — castidade, pobreza e obediência — estava presente de forma concreta e equilibrada no cotidiano dos beneditinos. O abade eleito pelos monges recebe deles total obediência, que representa ao mesmo tempo uma manifestação de pobreza, pois não se pode dispor sequer da própria vontade. A pobreza, por sua vez, não é entendida como falta ou miséria, mas posse do estritamente necessário, daí o monge não poder ter nada de seu, apesar de o mosteiro possuir propriedades recebidas em doação. A castidade, sendo negação da posse do próprio corpo, também é uma forma de pobreza. Sendo negação do usufruto do próprio corpo, é uma forma de obediência. A obediência, sendo uma renúncia, é ainda uma forma de castidade.
Desde fins do século III ocorria forte expansão do cristianismo nas cidades, onde a crise do Império Romano era mais sentida e, portanto, as condições para a cristianização mais favoráveis. O campo, sempre mais conservador, mantinha-se preso às suas antigas crenças, mesmo pré-romanas, daí paganus (“camponês”) ter sido identificado ao não-cristão. Com a decadência urbana e o conseqüente êxodo, o cristianismo penetrou no campo.
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A submissão ao Estado na Alta Idade Média
Estreitavam-se, portanto, as relações Estado-Igreja, com predomínio do primeiro na época de Carlos Magno. Os clérigos participavam então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, os cânones ganhavam força de lei. O monarca presidia os sínodos, punia os bispos, regulamentava com eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, intervinha mesmo em questões doutrinais. Os bispos eram nomeados pelo soberano, contrariamente à tradição canônica, mas o fato não era considerado uma usurpação, e sim um serviço prestado pelo monarca à Igreja, quase um dever do cargo. Suas conquistas territoriais abriram caminho para a cristianização dos saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e boêmios. Em virtude da crescente extensão do Império, ele instituiu muitas paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses.
Graças a isso, a Igreja enriqueceu ainda mais. No começo do século V ela tinha sido a segunda maior proprietária imobiliária do Ocidente, depois do Estado Romano, e tornou-se a maior desde fins daquele século, com o desaparecimento do Império. De fato, a chegada dos bárbaros não a prejudicou, pelo contrário, muitos indivíduos, diante da insegurança geral de então, entregaram suas terras ao patrocinium da Igreja.
Na terceira fase das relações Carolíngios-papado, completou-se a reforma monástica sob o governo de Luís, o Pio, que encarregou Bento de Aniane de realizá-la. Este, em 817, procurou inicialmente combater o relaxamento que tomara conta da vida monástica, impondo certa uniformização na aplicação da regra beneditina. Desde então, os monges entregaram-se especialmente ao culto. O clero secular retomava a direção do movimento de cristianização e o episcopado aumentava seu poder político.
A partir de inícios do século IX, inspirada no Direito Canônico e em Santo Agostinho, ganhou terreno à teoria do agostinianismo político, que afirmava a superioridade espiritual sobre a temporal, dos bispos sobre os reis. O movimento cultural chamado de Renascimento Carolíngio elevara o nível dos bispos. Tal teoria contribuiu para aumentar a autonomia da nobreza, o que teve reflexos negativos sobre a Igreja, com a generalização do sistema de “igreja própria”, já existente no século VII e que se estenderia até o século XII. Por ele, quando um latifundiário levantava uma igreja ou mosteiro em suas terras, mantinha esse bem como plena propriedade, podendo vendê-lo, doá-lo ou transmiti-lo em herança. Podia apropriar-se das esmolas e dízimos recebidos pela igreja ou mosteiro. Podia, sobretudo, nomear quem quisesse como sacerdote, função que desde o século VIII era atribuída como beneficiam ou feudo.
A tentativa de teocracia papal na Idade Média Central
Numa reação contra aquele estado de coisas, na Idade Média Central a Igreja teve como objetivo alcançar a autonomia e, sobretudo — concretizando o agostinianismo político e impedindo que prosseguisse a sujeição aos leigos — passar a dirigir a sociedade. O primeiro passo em direção àquela dupla meta tinha sido dado em princípios do século X, com a fundação do mosteiro de Cluny, na Borgonha. Adotando a regra beneditina, mas interpretando-a de forma própria, Cluny valorizava os trabalhos litúrgicos, que absorviam a quase totalidade do tempo dos monges. O trabalho manual foi abandonado aos camponeses de seus senhorios, o trabalho intelectual relegado a segundo plano. Vivendo sob rígida disciplina, cm ascetismo, silêncio e isolamento, os monges cluniacenses recuperaram o prestígio da vida religiosa.
Buscando restabelecer a paz social (não a igualdade, concepção estranha à época) e tornar-se sua guardiã, a Igreja promoveu em fins do século X o movimento conhecido por Paz de Deus. Ameaçados de excomunhão e de suas decorrentes punições sobrenaturais, os guerreiros foram pressionados a jurar sobre relíquias que respeitariam as igrejas, os membros do clero e os bens dos humildes.
Tal movimento estendeu-se até por volta de 1040, sem conseguir pacificar completamente a sociedade cristã ocidental. O clima de violência expressava as necessidades da aristocracia laica, mais numerosa devido ao crescimento demográfico, e a conseqüente disputa entre ela e a aristocracia eclesiástica pela posse das riquezas geradas pelos camponeses. Diante disso, seguindo o mesmo espírito da Paz de Deus, mas buscando criar novos mecanismos de controle sobre o comportamento da elite laica, a Igreja estabeleceu em princípios do século XI a Trégua de Deus.
Como a idéia básica da Paz e da Trégua de Deus era a preservação da ordem religiosa, social e política desejada por Deus, entende-se que a partir de fins do século XI ela tenha derivado para a idéia de Guerra Santa, que procurava impor aquela ordem dentro (Cruzada contra hereges) e fora (Cruzada contra muçulmanos) da Cristandade.
As Cruzadas deveriam funcionar não só como elemento de pacificação interna da Europa católica, levando para fora dela à irrequieta nobreza feudal, mas especialmente como um fenômeno aglutinador da Cristandade sob o comando da Igreja, acenava-se para seus participantes com a remissão dos pecados, a proteção eclesiástica sobre suas famílias e bens, a suspensão do pagamento de juros. Lutando sob a égide da Igreja, os cruzados deveriam agir como guerreiros imbuídos de seus ideais.
No século XIII estavam reunidas todas as condições para o exercício do poder papal sobre a comunidade cristã. Em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções, reconhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga em vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento, abstinências), regulamenta a atividade profissional (trabalhos lícitos e ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitudes), estipula os valores culturais.
Um claro sinal do alargamento das atribuições papais estava numa importante novidade, à exclusividade de canonização dos santos. Desde princípios do cristianismo, os mártires vitimados pelas perseguições romanas tornaram-se objeto de culto, sendo vistos como cristãos ideais, que tinham sacrificado suas vidas por fidelidade ao Deus único.
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A crise da Baixa Idade Média
A grande questão da Igreja na Baixa Idade Média foi, porém, um prolongamento da antiga disputa entre poder espiritual e poder temporal. Em fins do século XIII, o papa Bonifácio VIII, defensor da monarquia universal pontifícia, proibiu que os eclesiásticos fizessem doações sem autorização da Santa Sé e que os poderes laicos cobrassem taxas sobre bens da Igreja. Na França, em pleno processo de afirmação da monarquia nacional, o rei Filipe IV, em resposta, proibiu a saída de metais preciosos do país e baniu os coletores de impostos papais. Pouco depois, o monarca francês prendeu um bispo, levantando fortes protestos do papa. Filipe acusou Bonifácio de ter sido eleito papa ilegitimamente e em 1303 conseguiu prendê-lo na cidade de Anagni. Apesar de solto logo depois, o papa estava claramente desmoralizado, e o sonho da teocracia pontifícia falido.
A crise do pontificado e o desenvolvimento do nacionalismo, fenômenos, aliás, interligados, desenvolviam o sentimento de autonomia eclesiástica em diversos locais. Mesmo depois de reunificada pelo Concilio de Constança, havendo um só papa residindo na tradicional sede de Roma, a Igreja continuava abalada. Grandes problemas permaneciam, opondo concilio e papa, Igreja e monarquias, Estado Pontifício e Estados italianos, cultura cristã tradicional e nova cultura humanista. Assim, em 1517, exatamente 100 anos depois da volta do papado a Roma, começava o Protestantismo.
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Capítulo V - As estruturas sociais
A História Social total deve ser o objetivo último dos estudos históricos, não uma etapa da reconstituição do passado, um campo específico do saber.
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A redefinição da Primeira Idade Média
Os primeiros séculos medievais conheceram uma cristalização da hierarquia social, fenômeno que na verdade já se desenvolvia anteriormente, mas que se completou apenas no século IV. De fato, a crise geral que sacudiu a civilização romana no século III levara a uma limitação dos espaços de atuação individual e ao correspondente alargamento das funções do Estado.
As tentativas reformistas criaram uma enorme distância social entre as várias camadas. No topo da pirâmide estava a aristocracia senatorial, cinco vezes mais rica que a do século I. As camadas médias, rurais e urbanas, encolhiam. As primeiras, devido à generalização do patrocinium, laço de dependência que se criava entre um camponês livre e um grande proprietário. As camadas médias urbanas viam-se esmagadas por dois fatores. O primeiro deles — o processo de ruralização da sociedade romana — resultava de sua contradição básica: sendo escravista e imperialista, ela só poderia manter-se graças a novas conquistas que renovassem o estoque de mão-de-obra e trouxessem mais riquezas por meio de saques e tributos. Contudo, o escravismo e o imperialismo marginalizavam grande parte da população, que precisava ser sustentada pelo Estado.
O segundo fator que enfraquecia as camadas médias urbanas era um pesado conjunto de impostos que o Estado cobrava para tentar manter a própria vida citadina. Obrigados a contribuir na promoção de jogos circenses, na distribuição de trigo à população marginalizada e na realização de obras públicas, os curiales (espécie de aristocratas urbanos) procuravam fugir aos seus encargos. O Estado precisou proibir sua migração para o campo e mesmo sua entrada para a camada senatorial ou para o clero.
Na base da sociedade, os trabalhadores livres urbanos tiveram decretado a vitaliciedade e hereditariedade de suas funções, sendo reunidos em collegiae (corporações) de acordo com a especialização, para facilitar o controle estatal. Os trabalhadores livres rurais tendiam a se tornar dependentes dos latifundiários por meio do patrocinium e, sobretudo, do colonato. A criação dessa instituição era uma tentativa de responder a problemas colocados pela crise: atendia ao interesse dos proprietários em ter mais mão-de-obra, ao interesse do Estado em garantir suas rendas fiscais, ao interesse dos humildes e despossuídos por segurança e estabilidade.
Já no século III, precisando de soldados diante do retrocesso populacional, o Estado romano contratara muitos germanos, às vezes tribos inteiras. O pagamento por esse serviço militar era a entrega de lotes fronteiriços (hospitalitas), prática que se estendeu a todo o território romano com as invasões do século V.
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A aristocratização da Alta Idade Média
Como a terra era quase a única forma de riqueza da época, não existia uma camada urbana de comerciantes e artesãos que exercessem por conta própria e regularmente seu ofício, mas apenas uns poucos indivíduos dedicando-se àquelas atividades. A sociedade estava polarizada entre os proprietários fundiários, de um lado, e os camponeses despossuídos, de outro.
Dentre os primeiros, havia pequenos e médios proprietários, camponeses livres (pagenses) que trabalhavam sua terra com a ajuda de familiares e uns poucos escravos. Como todo homem livre, eles deviam (além do juramento de fidelidade ao soberano) serviço militar e judicial, encargos muito pesados para seus recursos.
A seguir vinham os colonos, que, apesar de serem juridicamente livres, cada vez mais sentiam a fraqueza da autoridade pública que deixava amplos poderes nas mãos dos grandes detentores de terras. Sua situação oscilava, conforme os momentos e os locais, entre a dos pagenses e a dos escravos. Por fim, havia uma mão-de-obra escrava.
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A feudo-clericalização dos séculos XI-XII
O que se deve chamar de feudalismo ou termo correlato (modo de produção feudal, sociedade feudal, sistema feudal etc.) é o conjunto da formação social dominante no Ocidente da Idade Média Central, com suas facetas política, econômica, ideológica, institucional, social, cultural, religiosa. Em suma, uma totalidade histórica, da qual o feudo foi apenas um elemento. No entanto — e procurando não perder essa globalidade de vista —, como examinamos cada uma daquelas facetas nos capítulos correspondentes, vamos aqui nos prender apenas à análise das relações sociais do feudalismo.
Ou melhor, do feudo-clericalismo. Realmente, este rótulo parece-nos mais conveniente, na medida em que explicita o papel central da Igreja naquela sociedade. Fato fundamental e geralmente pouco considerado.
Foi por intermédio dela que se deu a conexão entre os vários elementos (já anteriormente presentes) que comporiam aquela formação social. Foi ela a maior detentora de terras naquela sociedade essencialmente agrária, destacando-se, portanto, no jogo de concessão e recepção de feudos. Foi ela a controlar as manifestações mais íntimas da vida dos indivíduos: a consciência através da confissão; a vida sexual através do casamento; o tempo através do calendário litúrgico; o conhecimento através do controle sobre as artes, as festas, o pensamento; a própria vida e a própria morte através dos sacramentos (só se nascia verdadeiramente com o batismo, só se tinha o descanso eterno no solo sagrado do cemitério). Foi ela a legitimadora das relações horizontais sacralizando o contrato feudovassálico, e das relações verticais justificando a dependência servil.
Aliás, como produtora de ideologia, traçava a imagem que a sociedade deveria ter de si mesma.
Tínhamos, portanto, naquela sociedade de ordens, de um lado, duas camadas identificadas quanto às origens e aos interesses, detentoras de terra e, assim, de poder econômico, político e judicial (clérigos e guerreiros), de outro lado, uma massa formada principalmente por despossuídos e dependentes, os trabalhadores. Assim, davam-se três formas de relações sociais, uma horizontal na camada dominante, outra horizontal na camada dominada e outra vertical entre os dois grandes grupos.
A primeira forma ocorria pelo contrato feudo-vassálico. A segunda, por acordos para empreendimentos comuns, diante das dificuldades de um trabalhador realizar sozinho certas tarefas, como arar um campo ou arrotear uma área. A terceira, fundamental, estava na base da primeira (forma de a aristocracia dividir as terras e o produto do trabalho camponês) e da segunda (forma de os laboratores poderem concretizar seu papel social, de produtores).
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O feudo-aburguesamento dos séculos XII-XIII
O crescimento demográfico e econômico, as cidades da Idade Média Central revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços compulsórios da servidão a vida urbana oferecia muitos atrativos.
Mais do que isso, tornava-se burguês (habitante do burgo, ou seja, da cidade), o que significava uma situação jurídica própria, bem definida, com obrigações limitadas e direitos de participação política, administrativa e econômica na vida da cidade. E verdade que desde fins do século XII os imigrantes não encontravam nas cidades as oportunidades com que sonhavam, formando um proletariado que freqüentemente acabou por se chocar com a burguesia dona das lojas e oficinas. Mas, utopicamente, os centros urbanos continuaram a seduzir os homens do campo.
A grande síntese disso tudo talvez tenha sido o desenvolvimento do individualismo, com a conseqüente passagem da família patriarcal para a família conjugal e a correspondente valorização da mulher e da criança. Foi nas cidades que despontaram novos valores sociais, opostos aos coletivistas (interdependência das ordens) e machistas (predominância do clero celibatário e dos guerreiros). Na realidade, esse fenômeno social era reflexo c origem de um conjunto mais amplo de transformações, de uma revalorização do ser humano.
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A instabilidade dos séculos XIV-XVI
Na Baixa Idade Média, a passagem da sociedade de ordens para uma sociedade estamental, produto da própria dinâmica feudal, acelerou-se naquele contexto de crise generalizada. Com a quebra da rígida estratificação anterior, baseada num ordenamento divino da sociedade, o organismo social tornou-se determinável pelos próprios indivíduos.
A aristocracia, naturalmente, foi a mais atingida pelas transformações da época. As dificuldades da economia senhorial arruinavam muitas famílias nobres, que perdiam suas terras e se deslocavam para as cidades ou para as cortes principescas ou monárquicas. Dessa forma, a nobreza sofria certa descaracterização ou ao menos perdia alguns dos traços que tinham feito parte de seu poder e prestígio até então.
A burguesia, cujo aparecimento na Idade Média Central tinha expressado as transformações sociais então em gestação, consolidou-se com a crise aristocrática. Foi assim que se deu a penetração burguesa no campo, com a compra de terras, que ocorria pelo menos desde o século XIII acelerando-se na Baixa Idade Média.
Quanto à mão-de-obra urbana, a situação era mais homogênea e mais difícil. A crise não criou uma elite trabalhadora, como fizera no campo, apenas reforçou o poder da alta burguesia. A relativa alta de preços industriais, enquanto os preços agrícolas caíam, atraía muitos camponeses para as cidades. Dessa forma, aumentava a oferta de mão-de-obra urbana, o que permitia ao patriciado burguês pressionar os salários para baixo, rompendo a tendência altista gerada pela peste negra.
As revoltas urbanas, por sua vez, eram pelo controle do Estado, em processo de afirmação, fosse ele comunal, senhorial ou nacional.
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Capítulo VI - As estruturas culturais
Cultura era entendida como uma criação intelectual realizada por “grandes homens”, mais ou menos desvinculados do contexto histórico. E também como uma criação letrada, pois mesmo as artes, essencialmente visuais, pressuporiam certo conhecimento para ser “compreendidas”. No entanto, as transformações do último meio século nos veículos de divulgação cultural (rádio, televisão, cinema, jornais, revistas), e mais recentemente o diálogo da História com a Antropologia, romperam aquela visão estreita.
Para tanto, entenderemos cultura como tudo aquilo que o homem encontra fora da natureza ao nascer. Tudo que foi criado, consciente e inconscientemente, para se relacionar com outros homens (idiomas, instituições, normas), com o meio físico (vestes, moradias, ferramentas), com o mundo extra-humano (orações, rituais, símbolos). Esse relacionamento tem caráter variado, podendo ser de expressão de sentimentos (literatura, arte), de domínio social (ideologias), de controle sobre a natureza (técnicas), de busca de compreensão do universo (filosofia, teologia).
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As áreas culturais
De um lado, a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo menos até o século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social e latina do ponto de vista lingüístico. Conscientemente elaborada (mas sem deixar, é claro, de ser tributária da mentalidade), era formalmente transmitida (escolas monásticas, escolas catedralícias, universidades). Por isso, tendia a ser conservadora, a se fundamentar em autoridades.
De outro lado, estava a cultura que já foi chamada de popular, laica ou folclórica, e que preferimos denominar “vulgar”, pois para os medievais esta palavra rotulava sem ambigüidade tudo que não fosse clerical. A cultura vulgar era oral, transmitida informalmente (nas casas, ruas, praças, tavernas etc.) por meio de idiomas e dialetos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela expressava a mentalidade de forma mais direta, com menos intermediações, com menos regras preestabelecidas. Ideologicamente, ela se inclinava a recusar os valores e práticas oficiais. Ainda que muito presa às suas próprias tradições — que a Igreja tendia a tachar de superstições —, a cultura vulgar não estava fechada a outras influências.
A cultura erudita procurou apossar-se dos relatos míticos, promovendo e legitimando o registro escrito de alguns deles e controlando sua interpretação.
A cultura vulgar, por sua vez, pressionou ao longo da Idade Média para que certos ritos fossem criados ou modificados.
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A bipolarização da Primeira Idade Média
Na Primeira Idade Média, as dificuldades da época estabeleceram caracteres culturais que se manteriam, com variações de intensidade, nos séculos seguintes. Primeiro, alargamento do fosso entre a elite culta e a massa inculta. Segundo, este corte cultural não coincidia com a estratificação social: a linha de separação era entre clérigos e leigos, realidade sociocultural que ficou registrada no francês moderno clerc (“letrado”), no inglês clerk (“escrevente”) e no português “leigo” (ignorante). Terceiro, a cultura clerical era uma sistematização e simplificação da herança greco-romana, adaptada à situação de uma época convulsionada politicamente, enrijecida socialmente, empobrecida economicamente e, síntese disso tudo, limitada pelo seu “absolutismo religioso”. Quarto, a cultura vulgar regredira com as dificuldades materiais, a insegurança espiritual e a fusão com elementos bárbaros, daí a ressurgência de técnicas, crenças e mentalidades tradicionais, pré-romanas.
Em virtude desse clima cultural e da finalidade que se atribuía ao conhecimento, às ciências viam-se limitadas no seu desenvolvimento. Predominava a concepção de que a meta do homem era o Reino de Deus e de que a Revelação estava contida nas Sagradas Escrituras.
A Literatura também foi influenciada por aquela tendência a preservar e cristianizar obras antigas, mais do que a criar. Não havia preocupação com originalidade, apenas com a conservação da literatura clássica por meio de cópias realizadas nos scriptoria monásticos.
A arte ocidental dos séculos IV-VIII realizou uma síntese de elementos de origens diversas. Da arte romana clássica conservou-se algo das técnicas e das características arquitetônicas. Da arte oriental, com a qual se manteve contato mesmo após as invasões germânicas, através de mercadores e missionários, veio certa estilização e hieratismo das formas. Da
arte germânica, típica de povos nômades, aproveitou-se o caráter não figurativo e o geometrismo estilizado. Da arte céltica, através das iluminuras dos monges irlandeses, absorveu-se o uso de linhas abstratas, apenas ornamentais. Da arte cristã primitiva veio o essencial, isto é, a temática e o simbolismo. No todo, elementos que se completavam mais do que se negavam, tendo cada um deles peso variável conforme o gênero artístico (arquitetura, escultura, pintura, miniatura, mosaico etc.) e as condições locais (composição étnica, meio físico, época).
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A clericalização da Alta Idade Média
Entre as últimas décadas do século VIII e as primeiras do século IX, com a estreita relação entre Estado e Igreja que levou à constituição do Império Carolíngio, as manifestações da cultura vulgar foram de forma geral abafadas. A cultura clerical, mais do que nunca tornada oficial, foi produzida no âmbito do movimento que se convencionou chamar de Renascimento Carolíngio. Segundo o próprio Carlos Magno, seu objetivo era fazer com que “a sabedoria necessária à compreensão das Sagradas Escrituras não seja muito inferior à que deveria ser”. Melhorar o nível dos clérigos significava para a Igreja oferecer serviços religiosos mais elevados e para o Império servidores administrativos mais eficientes. Daí o alcance daquele movimento ter-se limitado a algumas centenas de pessoas, concentradas nas escolas monásticas e, novidade, numa escola criada no próprio palácio imperial. Diante de seus objetivos, a tônica não era criar, mas redescobrir, adaptar, copiar, por isso já se disse que “a Renascença Carolíngia, ao invés de semear, entesoura”.
Para acelerar essa atividade copista e minimizar os erros de transcrição, buscava-se já havia algum tempo desenvolver uma caligrafia menos desenhada, que apresentasse maior regularidade. Uma caligrafia mais prática, cursiva, que implicasse menor número de movimentos com a mão.
O reequilíbrio da Idade Média Central
Com as acentuadas transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas a partir do século XI, foi quebrada a clara predominância desfrutada pela cultura clerical na fase anterior. A cultura vulgar ressurgia com força. Em conseqüência, a cultura intermediária passou a marcar presença em quase todos os campos. A cultura erudita viu, assim, reduzidas suas áreas de exclusividade, mas com isso pôde concentrar forças e em certos setores atingir seu apogeu. O movimento conhecido por Renascimento do século XII ilustra bem esse fenômeno.
A Reação Folclórica
Com efeito, assistiu-se no século XI a um reequilíbrio de forças entre os dois pólos culturais. Assim como na Alta Idade Média ocorrera a clericalização de muitos elementos folclóricos, agora se dava a folclorização de elementos cristãos. O cristianismo, ao dessacralizar a natureza (que não se identificava mais com as divindades pagãs), tinha marcado nova etapa no pensamento racionalista, e nesse sentido a oposição folclórica representou a resistência de outro sistema mental, de outra lógica, a do “pensamento selvagem”.
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A cultura intermediária e a arte
Mas a emissão e a recepção da mensagem iconográfica não era, obviamente, sempre a mesma. As iluminuras de textos bíblicos e teológicos, consumidas apenas por clérigos, recebiam tratamento mais erudito. As esculturas, as pinturas murais, os mosaicos, os vitrais, colocados em igrejas, mosteiros e catedrais em locais visíveis a todos, transmitiam mensagens ao alcance desse público mais amplo.
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A cultura intermediária e a literatura
Na literatura latina, ao lado de uma produção nitidamente clerical (crônicas, poesias de cunho clássico), havia uma de espírito popular (hagiografia) e outra erudita mas antieclesiástica (goliárdica). Na literatura vernácula, havia gêneros com forte coloração clerical (canção de gesta, ciclo do Graal) e outros acentuadamente laicos (lais,fabliaux). Em termos culturais, portanto, e não apenas lingüísticos, boa parte da literatura da Idade Média Central estava na zona da cultura intermediária.
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A cultura clerical e o ensino
Um setor cultural que a Igreja monopolizava desde princípios da Idade Média continuou nos séculos XI-XIII sob seu controle, apresentando, todavia, características novas, que tendiam a escapar de sua alçada — o ensino. De qualquer forma, mesmo com certa laicização o ensino não deixava de estar na área da cultura clerical, entendida cada vez mais, como já dissemos, como cultura de letrados, e não apenas cultura de eclesiásticos.
Nesse processo, surgiram no século XI as escolas urbanas, que se transformariam em universidades no século XIII. Ambas eram produto do crescimento demográfico-econômico-urbano, que tornava a sociedade mais complexa e mais necessitada de atividades intelectuais. De fato, eram necessários sacerdotes em maior número e mais bem preparados para guiar fiéis mais numerosos e com novos problemas; juristas para uma maior quantidade de tribunais e às voltas com questões novas c mais difíceis; burocratas para os reis e grandes senhores feudais, cujos rendimentos, despesas e interesses se ampliavam; mercadores para atender à crescente procura de bens e que precisavam elaborar contratos, escrever cartas, controlar lucros e estoques.
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A cultura clerical e a teologia/filosofia
O curso universitário que gozava de maior prestígio, apesar de toda a laicização da sociedade e da cultura que ocorria no século XIII, era sem dúvida o de Teologia, especialmente o de Paris. O conhecimento nessa área mantinha-se virtualmente o mesmo dos séculos anteriores, com o termo então utilizado (sacra doctrina) indicando que ela abarcava apenas o que tinha sido revelado direta ou indiretamente por Deus: Bíblia, decisões de concílios, comentários há muito aceitos pela Igreja. Na expressão de Santo
Anselmo, era “a fé em busca da inteligência”.
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O redirecionamento da Baixa Idade Média
O frágil equilíbrio entre cultura clerical e cultura vulgar rompeu-se com a crise do século XIV. A razão disso está ligada ao fato de que na Baixa Idade Média “existia uma falta geral de equilíbrio no temperamento religioso, o que tornava tanto as massas como os indivíduos suscetíveis de violentas contradições e de mudanças súbitas” (62: 163). As manifestações culturais oscilavam então do mais estrito racionalismo ao mais fervoroso misticismo. A cultura clerical não tinha mais a coerência da Alta Idade Média e a cultura vulgar não possuía o mesmo vigor que na Idade Média Central. Buscava-se uma nova composição, da qual sairia à cultura renascentista dos séculos XV-XVI.
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Capítulo VII - As estruturas cotidianas
O caráter factual e descritivo que marcou de forma geral a historiografia até princípios deste século levava à desconsideração dos “pequenos fatos”, dos eventos do dia-a-dia, repetitivos, sem uma influência clara e direta sobre os “grandes fatos” (batalhas, sagração de reis, criação de instituições, surgimento de importantes obras literárias e artísticas etc). No entanto, a crescente compreensão de que o tecido da História é formado por fios dos mais variados tamanhos e cores permitiu o aparecimento de estudos sobre a vida cotidiana e privada das populações do passado. Ou seja, dos aspectos mais duradouros e presentes no desenrolar da História.
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O tempo
A Idade Média não se interessava por uma clara e uniforme quantificação do tempo. Como na Antigüidade, o dia estava dividido em 12 horas e a noite também, independentemente da época do ano. Os intervalos muito pequenos (segundos) eram simplesmente ignorados, os pequenos (minutos) pouco considerados, os médios (horas) contabilizados grosseiramente por velas, ampulhetas, relógios d'água, observação do Sol.
Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um controle maior sobre as horas, contando-as precariamente de três em três a partir da meia-noite (matinas, laudes, primas, terça, sexta, nona, vésperas, completas).
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Sexo
O surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psicológica e comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso. Tornado religião oficial em 392 e cada vez mais institucionalizado pela Igreja, já na Primeira Idade Média o cristianismo pôde impor seus
valores.
A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua mãe. Vinha depois a castidade: quem já havia pecado podia em parte compensar essa falta abstendo-se de sexo pelo restante da vida. Os relatos hagiográficos de toda a Idade Média, sobretudo de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de santas que morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao se converter ao cristianismo abandonaram a vida conjugal.
Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado, mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma “pagã”, no dizer da Igreja.
O matrimônio é uma relação monogâmica. Por um lado, isso atendia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unidade cosmológica, talvez como forma compensatória à grande diversidade da realidade concreta do Ocidente, dividido em vários reinos, milhares de feudos, dezenas de línguas e dialetos, diferentes liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana tentou-se impor o rito galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se concretizar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma só Igreja, uma só fé, um só governante secular. Por outro lado, a monogamia respondia a uma lenta mas inegável transformação na sensibilidade coletiva — que a Igreja soube reconhecer e tornar lei — pela qual se passava a ver a essência do casamento no consentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união deveria ser construída a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses políticos ou patrimoniais.
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Alimentação
Apesar das variações regionais de solo e clima, a Europa medieval consumia por toda parte praticamente os mesmos alimentos e bebidas, preparados quase que da mesma maneira.
Diferenças houve, acima de tudo, entre as categorias sociais. O aristocrata, eclesiástico ou leigo, recebia de seus camponeses, pelo uso da terra, prestações em serviço e produtos agrícolas. Podia, assim, consumir de tudo. Detentor de vários senhorios, um aristocrata não se fixava numa certa terra, morando cada parte do ano numa região, onde consumia a parcela da produção local que lhe cabia. Podia, então, ter alimentos todo o ano, independentemente das vicissitudes agrícolas de cada senhorio. Apesar disso, por razões culturais, o cardápio não era muito variado. Os legumes e verduras não estavam muito presentes, porque, sendo considerados produtos pouco nobres e de digestão difícil, ficavam reservados para dias de jejum. Os queijos, com exceção das regiões montanhosas, também eram desprezados pelas camadas dirigentes, que viam neles aumentos de camponeses, pela literatura, que os associava aos loucos, e pela medicina, que até o século XVI os considerava pouco saudáveis.
A base da alimentação aristocrática era, portanto, carnívora. Carne de animais domésticos, vaca, vitela, carneiro e sobretudo porco. Carne de caça, especial-mente cervo, javali e lebre. Carne de aves, galinha, pato, ganso, cisne, pombo. Carne de peixe de água doce onde possível, pescados em rios e lagos ou criados em tanques (carpa, sável, esturjão). Carne de peixe de mar, consumido fresco nas regiões litorâneas (salmão, linguado, pescado) ou seco nas regiões continentais (arenque, bacalhau). A bebida para acompanhar essas refeições era o vinho. A sobremesa nas mesas aristocráticas podia ser alguma fruta fresca (geralmente consumida no início das refeições ou nos intervalos entre elas) ou, mais comumente, frutas secas (figos, passas, amêndoas, nozes etc.) ou, preferencialmente, uma torta ou bolo doce.
A dieta burguesa procurava em linhas gerais imitar a aristocrática, sobretudo no seu fundamento carnívoro.
A alimentação camponesa estava baseada nos cereais, que forneciam as calorias necessárias para o esforço físico nas tarefas rurais. Cereais preparados sob a forma de papas e mingaus e especialmente de pão. Na verdade, o pão era essencial desde a Antigüidade.
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Moradia
a moradia apresentava grandes variedades regionais, resultantes das necessidades impostas pelo clima e das possibilidades permitidas pelos materiais de construção de cada local.
O norte úmido, frio e florestal definiu um estilo obviamente diferente do sul mediterrâneo seco, quente e pedregoso. As regiões montanhosas do norte ibérico, da zona pirenaica, do centro francês e da região alpina buscaram soluções próprias, diferenciadas das áreas planas. As cidades apresentavam, naturalmente, condições específicas, com uma grande população concentrada numa superfície pequena, enquanto o campo tinha uma densidade demográfica baixa. Mas, assim como os campos se diferenciavam pelo seu contexto geográfico, as cidades não eram iguais entre si. Uma grande sede feudal (como Troyes), a capital de um reino (caso de Londres), uma importante sé episcopal (Burgos, por exemplo), uma cidade dedicada ao comércio internacional (como Veneza ou Lübeck), uma cidade artesanal (como Ypres), um pequeno burgo rural (os mais comuns) não poderiam, por razões geográficas e profissionais, construir habitações e edifícios públicos da mesma forma.
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Vestuário
Por toda Idade Média a base do vestuário foi à túnica de mangas. Seu comprimento mudou várias vezes, mas geralmente ia até os tornozelos para as mulheres e até os joelhos para os homens. Debaixo dessa túnica usava-se uma camisa, longa no caso feminino, curta no masculino, pois os homens portavam ainda calções, uma espécie de ceroula que ia até os tornozelos. No inverno, quem tinha condições colocava diretamente no corpo, sob a camisa, uma peliça, espécie de colete de pele, sem mangas Por cima de tudo vinha uma capa, às vezes com capuz, de pele no caso dos mais ricos, de lã no dos mais simples. O calçado podia ser bota de couro de cano alto para os ricos ou simples sapatilha de tecido para os mais pobres. O uso de luvas era difundido em todas as categorias sociais.
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Lazer
Os medievais levavam uma vida material dura, os clérigos passando muitas horas por dia em orações, estudo e tarefas cotidianas de sua diocese ou mosteiro, os senhores laicos em exercícios militares e administração de seu senhorio, os burgueses em difíceis negociações e perigosas viagens, os camponeses num trabalho pesado e de retorno nem sempre compensador.
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Morte
Vivendo num mundo agrícola, em que se percebe cotidianamente como alguns seres precisam morrer para que outros possam viver, convivendo com a constante ameaça da fome, das epidemias e das guerras, os medievais sentiam a onipresença da morte, mas isso não os incomodava. Eles tinham dela uma visão natural, tranqüila, diferente da de seus descendentes dos séculos seguintes. Como o cristianismo ensina que a morte é o começo da vida eterna, e não o fim definitivo, chegado o momento as pessoas procuravam se preparar. A grande tragédia não era morrer, mas morrer inesperadamente, sem ter confessado, recebido os sacramentos, feito doações e esmolas, estabelecido o testamento. Tinha-se consciência e resignação pelo fato de que o destino das espécies vivas é morrer. A morte
nivela os homens e mostra o despropósito de seu orgulho e suas riquezas.
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Capítulo VIII - As estruturas mentais
Apenas há pouco tempo foi tornado objeto de estudo o fato óbvio de que o homem, e portanto a História, é formado tanto por seus sonhos, fantasias, angústias e esperanças quanto por seu trabalho, leis e guerras. Desta forma, é fundamental a compreensão do primeiro conjunto de elementos para que o segundo ganhe sentido. Bem entendido, não se trata de adotar uma postura determinista, atribuindo tudo à mentalidade (ou à economia, ou à política etc.)- Mas é preciso considerar o pano de fundo mental, “o nível mais estável, mais imóvel das sociedades” (LE GOFF: 69).
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A visão hierofânica de mundo
Para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era sagrado, fenômeno psicossocial típico de sociedades agrárias, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças desconhecidas e não controláveis.
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O simbolismo
“A função do símbolo é religar o alto e o baixo, criar entre o divino e o humano uma comunicação tal que eles se unam um ao outro” (39: 98). E encontro de duas realidades numa só, ou melhor, expressão da única realidade sob outra forma. O símbolo é inferior à realidade simbolizada, mas por intermédio daquele o homem se aproxima desta, restabelecendo a unidade primordial. Por isso ele está presente em todas as religiões, cujo sentido é exatamente esse de religar mundo humano e mundo divino. Entende-se, dessa forma, que a relação do símbolo com a coisa simbolizada seja profunda, de essencialidade.
Todos os elementos da natureza, animais, plantas, pedras, são símbolos, respondendo à necessidade de exprimir o invisível e o imaterial por meio do visível e do material. Por essa razão, o templo cristão não poderia deixar de ter forte carga simbólica, especialmente no período românico. A planta em cruz terminando numa cabeceira com várias capelas expressava a concepção de que a igreja era o próprio corpo de Cristo, daí o portal ser um arco do triunfo para se entrar no Reino de Deus.
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O belicismo
Esta característica da mentalidade medieval decorria da presença constante daquelas manifestações sagradas nas suas duas modalidades, vistas do ponto de vista humano, benéficas e maléficas. Elas prolongavam no palco terreno a luta que envolvia temporariamente todo o universo. Os poderes negativos constituíam-se numa realidade palpável para aquela sociedade de tempo rigidamente dividido entre dia e noite, sem luz artificial eficiente, na qual as trevas eram fortemente sentidas. Sua presença cotidiana era indisfarçável e esmagadora. As atividades humanas ficavam limitadas às horas diurnas. A noite era o momento do desconhecido, portanto do assustador. Significativamente, ela era circunstância agravante para a justiça medieval
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O contratualismo
Por fim, do belicismo derivava o contratualismo, estrutura mental que via o homem ligado, com os correspondentes direitos e deveres, a uma ou outra daquelas forças universais em luta. A opção pelo Mal dava origem ao chamado pacto demoníaco, como na conhecida história de Teófilo. Querendo ser nomeado vigário, ele recorreu aos serviços de um judeu que o levou até a presença do Diabo, de quem se tornou “bom vassalo” após renegar Cristo e Maria. Numa carta entregue ao “rei coroado” do Inferno, ele formalizava o acordo, e obteve então as glórias e vantagens que desejava. Depois, arrependido, pediu ajuda à Virgem, “porta do Paraíso”, para recuperar aquela carta, pois “isto foi o pior”, e sem reavê-la não poderia romper seu trato com Satanás. A Virgem o ajudou, o contrato demoníaco foi queimado e ele pôde ter sua alma salva.
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Capítulo IX - O significado da Idade Média
Após os exageros denegridores dos séculos XVI-XVII e os exaltadores do século XIX, hoje temos uma visão mais equilibrada sobre a Idade Média. E verdade que a divulgação que ela conheceu em fins do século XX fora dos meios acadêmicos — inúmeras publicações científicas e ficcionais, filmes, discos, exposições, turismo etc. — nem sempre implicou uma melhor compreensão daquele período. Mas reflete um dado essencial: a percepção que se tem da Idade Média como matriz da civilização ocidental cristã. Diante da crise atual dessa civilização, cresce a necessidade de se voltar às origens, de refazer o caminho, de identificar os problemas. Enfim, de conhecer a Idade Média para conhecer melhor os séculos XX-XXI.
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A longa Idade Média
Os quatro movimentos que se convencionou considerar inauguradores da Modernidade — Renascimento, Protestantismo, Descobrimentos, Centralização — são em grande parte
medievais. O primeiro deles, o Renascimento dos séculos XV-XVI, recorreu a modelos culturais clássicos, que a Idade Média também conhecera e amara. Aliás, foi em grande parte por meio dela que os renascentistas tomaram contato com a Antigüidade. As características básicas do movimento (individualismo, racionalismo, empirismo, neoplatonismo, humanismo) estavam presentes na cultura ocidental pelo menos desde princípios do século XII.
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A herança medieval no século XX
O patrimônio lingüístico ocidental é quase todo medieval, já que, com exceção do basco, idioma cujas origens continuam desconhecidas para os especialistas, às demais línguas formaram-se na Idade Média. Uma terça parte da população mundial atual, isto é, 2 bilhões de pessoas, pensa e se exprime com instrumentos lingüísticos forjados na Idade Média. De fato, ao lado do latim legado pela Antigüidade — e durante a Idade Média empregado nos ofícios religiosos, nas atividades intelectuais e na administração, mas língua morta no sentido de não ser mais língua materna de ninguém —, no século VIII nasceram os idiomas chamados de vulgares, falados cotidianamente por todos, mesmo pelos clérigos. Correndo o risco de simplificar em demasia um processo longo e complexo, podemos dizer que aqueles idiomas se formaram da interpenetração — em proporção diferente a cada caso — do celta, do latim e do germânico.
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A herança medieval no Brasil
Mesmo no Brasil, que vivia na Pré-História enquanto a Europa estava na chamada Idade Média, muitos elementos medievais continuam presentes. A colonização portuguesa introduziu práticas que, apesar de já então superadas na metrópole, foram aqui aplicadas com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos séculos e muitos aspectos da história brasileira. Luís Weckmann detectou com pertinência a existência de uma herança medieval no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o século XVII. E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços essenciais.
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Conclusão - O nascimento do Ocidente
Homem atual se reconhece mais nas coisas superficiais, de origem recente, do que nas essenciais, que vêm daquela época. Este é um grave problema do mundo atual, no qual os
meios de comunicação de massa uniformizam, apagam e constroem fatos incessantemente. Desta forma, há um afastamento da cultura, baseada no indivíduo, na inquietação, na interrogação, não em respostas prontas e rápidas.
A fraqueza do homem medieval era sua força, pois gerava desejos, motivações. A força do homem atual é sua fraqueza, pois gera desilusões. Na verdade, foi conseguindo ao longo dos séculos satisfazer aqueles desejos que o homem chegou à situação atual. Satisfação de desejos que se deu mais no plano material do que no espiritual, daí certa sensação de vazio, de falta de sentido das coisas, que a arte e a literatura contemporâneas expressam fartamente. De certa forma, a crise da civilização ocidental deve se ao descompasso entre o externo (contemporâneo) e o interno (medieval). E uma excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo. E uma espécie de esquizofrenia coletiva e social. Em razão disso, os crescentes prestígio e popularidade dos estudos sobre a Idade Média têm algo, inconscientemente, de busca de reintegração dos dois planos.
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Introdução: O (Pré)Conceito De Idade Média
Falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos momentos passados, foi o século XVI que elaborou tal conceito, um desprezo não disfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antigüidade Clássica e o próprio século XVI.
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A Idade Média Para Os Renascentistas E Iluminista
O italiano Francesco Petrarca (1304-1374) já se referira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas.
A arte medieval, por fugir aos padrões clássicos, também era vista como grosseira daí o grande pintor Rafael Sanzio (1483-1520) chamá-la de “gótico”, termo então sinônimo de “bárbara”.
O sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média” teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, também para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição.
O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuaram o menosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da nobreza e do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razão, censurava, sobretudo a forte religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de que a Igreja então desfrutara.
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A Idade Média Para Os Românticos
O Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu, contudo, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto de partida foi à questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do século XIX.
Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média oferecia um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao cientificismo.
Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão preconceituosa quanto à dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois, ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memória histórica. Para aqueles, um período esplêndido, um dos grandes momentos da trajetória humana, algo a ser imitado, prolongado.
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A Idade Média Para O Século XX
Passou-se a tentar ver a Idade Média como os olhos dela própria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Entendeu-se que a função do historiador é compreender, não a de julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média.
Ao examinar qualquer período do passado, o estudioso necessariamente trabalha com restos, com fragmentos — as fontes primárias, no jargão dos historiadores — desse passado, que portanto jamais poderá ser integralmente reconstituído. Ademais, o olhar que o historiador lança sobre o passado não pode deixar de ser um olhar influenciado pelo seu presente.
O período que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não mais “antiga” e ainda não claramente “medieval”. Apesar disso, talvez seja melhor chamá-la de Primeira Idade Média do que usar o velho rótulo de Antigüidade Tardia, pois nela teve início a convivência e a lenta interpenetração dos três elementos históricos que comporiam todo o período medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade Média: herança romana clássica, herança germânica, cristianismo.
Nesse mundo em transformação, a penetração germânica intensificou as tendências estrutural anteriores, mas sem alterá-las. Foi o caso da pluralidade política substituindo a unidade romana, da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia seu caráter mediterrânico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a articulação entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas sociedades forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval.
Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade Média (meados do século VIII - fins do X). Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade política com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas tendências centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal.
Graças a esse temporário encontro de interesses entre a Igreja e o Império, ocorreu certa recuperação econômica e o início de uma retomada demográfica. Iniciou-se então a expansão territorial cristã sobre regiões pagãs — que se estenderia pelos séculos seguintes — reformulando o mapa civilizacional da Europa.
A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou foi, grosso modo, a época do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta à crise geral do século X. A sociedade cristã ocidental conheceu uma forte expansão populacional c uma conseqüente expansão territorial, da qual as Cruzadas são a faces mais conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produção cultural acompanhou essa tendência nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências. Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Média, daí ter merecido em todos os capítulos deste livro uma maior atenção.
A Baixa Idade Média (século XIV - meados do século XVI) com suas crises e seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento.
Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, e com ele nossos conhecimentos sobre o período. Sua infância e adolescência cobriram boas parte de sua vida (séculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas são comparativamente poucas.
Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (século XIV-XVI) deixaram, pelo contrário, uma abundante documentação.
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A Idade Media Para Os Medievais
As primeiras sociedades só registravam o tempo biologicamente, sem transformá-lo em História, portanto sem consciência de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas, viver no real era viver segundo modelos extra-humanos, arquetípicos. Assim, tanto o tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) só existiam por reproduzir atos ocorridos na origem dos tempos.
Tal concepção sofreu sua primeira rejeição com o judaísmo, que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos arquetípicos, mas uma personalidade que intervém na História. O cristianismo retornou e desenvolveu essa idéia, enfatizando o caráter linear da História, com seu ponto de partida (Gênese), de inflexão (Natividade) e de chegada (Juízo Final).
Pelo menos até o século XII os medievos não sentiam necessidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava e acentuava a falta de um conceito claro sobre sua própria época. De maneira geral, prevalecia o sentimento de viverem em “tempos modernos”, devido à consciência que tinham do passado, dos “tempos antigos”, pré-cristãos. Estava também presente a idéia de que se caminhava para o Fim dos Tempos, não muito distante.
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Capitulo I – As Estruturas Demográficas
O surgimento da Demografia Histórica, há menos de cinco décadas, enriqueceu consideravelmente o arsenal do historiador na sua tarefa de compreensão do passado.
A Idade Média estava na etapa que os especialistas chamam de Antigo Regime Demográfico, típico das sociedades agrárias, pré-industriais: alta taxa de natalidade e alta taxa de mortalidade. Em razão disso, a conjugação de certos fatores (estiagens, enchentes, epidemias etc.) por poucos anos seguidos alterava o quadro demográfico ao elevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo contrário, a ausência de eventos daquele tipo rapidamente produzia um saldo populacional positivo.
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Retratação Da Primeira Idade Media
Do ponto de vista demográfico, a primeira fase medieval foi um prolongamento da situação do Império Romano, cuja população conhecera um claro recuo desde o século II. Com a crescente desorganização do aparelho estatal romano, foram rareando as importações de gêneros alimentícios que tinham por séculos permitidos a existência de uma grande população urbana. As cidades começaram a se esvaziar, cada região tentou passar a produzir tudo àquilo de que necessitasse, Tal fenômeno paradoxalmente aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para que a mortalidade naquele local rapidamente se elevasse, devido às dificuldades em obter alimentos em outras regiões.
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A Relativa Ocupação Da Alta Idade Média
Por meio de indícios esparsos na documentação — de interpretação problemática — indica certa retomada demográfica na segunda metade do século VIII. Esse fato talvez esteja ligado à reorganização promovida pelos Carolíngios, e talvez ajude mesmo a explicar a expansão territorial realizada por Carlos Magno. Contudo, essa recuperação foi desigual no
tempo e no espaço. Em muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade continuavam acentuadas.
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A Expansão Da Idade Media Central
Apesar da inexistência de uma documentação quantitativa, é inquestionável aquele crescimento na Idade Média Central, como se percebe por cinco claros indícios: um acentuado movimento migratório; o movimento de arroteamentos, que fazia recuar as florestas, os terrenos baldios, as zonas pantanosas; aumento do preço da terra e do trigo; acentuado crescimento da população urbana naquele período; transformações sofridas pela arquitetura religiosa.
Todos esses testemunhos apontam, portanto, para um forte crescimento demográfico entre os séculos XI e XIII, mas é extremamente difícil quantificá-lo. De maneira geral, a documentação medieval fornece poucos dados populacionais que permitem um tratamento estatístico.
Portanto, mesmo sem se poder quantificar com maior rigor e precisão a expansão demográfica da Idade Média Central, ela é inegável. Naquele período dois fatores que anteriormente elevavam a mortalidade tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles foi à ausência de epidemias, com o recuo da peste e da malária, continuando apenas a lepra a ter certa intensidade.
O segundo fator a considerar é o tipo de guerra, que não envolvia grandes tropas de combatentes anônimos, como nas legiões romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros.
Guerra feudal não objetivava a morte do adversário, apenas sua captura. Como uma das obrigações vassálicas era pagar o resgate do senhor aprisionado, c como na pirâmide hierárquica feudal quase todo nobre, além de ser vassalo de outros, tinha seus próprios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um rendimento proporcional à importância do prisioneiro.
Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica medieval foi à suavização do clima. Na Europa ocidental o clima tornou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre 750 e 1215. A viticultura pôde então expandir-se em regiões anteriormente impróprias, como a Inglaterra. A paisagem de alguns locais foi alterada e humanizada, como a Groenlândia, que fazia jus a seu nome (literalmente, “terra verde”) e apenas no século XIII, em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em sua direção, tornando-se inóspita.
O período mais quente e seco não apenas transformou determinadas áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para dificultar a difusão da peste.
Por último, ajuda a explicar o crescimento populacional dos séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de inovações nas técnicas agrícolas. Dentre os aperfeiçoamentos técnicos da época, três exerceram uma ação direta sobre a elevação da produtividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada e o sistema trienal.
As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualidade. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque, baseada em cereais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas proteínas e vitaminas. A alteração então ocorrida na dieta talvez explique a mudança na proporção entre população masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda posteriormente.
Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher.
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O Ressurgimento Da Peste Na Baixa Idade Media
O crescimento populacional acabou por se revelar excessivamente elevado para as condições européias de então. Durante o auge daquele fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de menor fertilidade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a produtividade média e desestabilizando o frágil equilíbrio produção-consumo.
O aumento populacional tinha implicado a derrubada de grandes extensões florestais, já que a madeira era o principal combustível e material de construção. Isso ajuda a explicar as chuvas torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior parte da Europa ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação florestal.
Em Antuérpia, importante centro distribuidor de cereais, o trigo subiu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade de vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias agravavam a situação. Impulsionada pela fome, muita gente vagava em busca do que comer, levando consigo as epidemias e a desordem.
A crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu ponto crucial no ressurgimento da peste, então conhecida por peste negra. Ela apresentava-se de duas formas. A bubônica (assim chamada por provocar um bubão, um inchaço) tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem dela) de 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas. A peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma letalidade de 100%, fazendo suas vítimas depois de apenas dois ou três dias de contraída a doença.
Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a todos. Até 1670, a Europa foi atingida todo ano. No período crítico, o da chamada peste negra, em 1348-1350, as perdas humanas variaram, conforme a região, de dois terços a um oitavo da população.
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Capitulo II – As Estruturas Econômicas
O prestígio ímpar que a História Econômica desfrutou por longo tempo deixou profundas marcas na produção medievalística. Sobretudo porque a impossibilidade de realizar estudos quantitativos como os que eram feitos para períodos históricos mais recentes, levou ao desenvolvimento de metodologias próprias. A historiografia especializada desenvolveu então trabalhos baseados no qualitativo (indícios, tendências, características), que elucidam melhor a economia medieval do ponto de vista da própria época.
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Retração E Estagnação Até O Século X
Do ângulo econômico, os séculos IV-X caracterizou por uma pequena produtividade agrícola e artesanal, conseqüentemente uma baixa disponibilidade de bens de consumo e a correspondente retração do comércio e portanto da economia monetária. Paralelamente, existiam pequenas e médias propriedades, ainda que aos poucos elas fossem absorvidas pelas villae. De qualquer forma, estas são mais bem conhecidas e predominavam naquele território que era o centro de gravidade de então, daí porque seja justificável falar em economia agrária dominial.
Esta girava em torno da divisão da área em duas partes. A primeira, chamada na época de terra indominicata (ou de reserva senhorial pelos historiadores), era explorada diretamente pelo senhor. Ali estava sua casa, celeiros, estábulos, moinhos, oficinas artesanais, pastos, bosques e terra cultivável. A segunda parte era a terra mansionaria, ou seja, o conjunto de pequenas explorações camponesas, cada uma delas designada pelos textos a partir do século VII por mansus. Cada manso era a menor unidade produtiva e fiscal do domínio. Dele uma família camponesa tirava sua subsistência, e por ter recebido tal concessão devia certas prestações ao senhor. Os mansi serviles, ocupados por escravos, deviam encargos mais pesados que os mansi ingenuiles, possuídos por camponeses livres.
Apesar de o fundamento da economia dominial estar na prestação de serviço na reserva senhorial por parte de camponeses livres mas dependentes, não se pode esquecer da mão-de-obra escrava. Tudo indica que a escravidão ainda era praticada em boa parte do Ocidente cristão, especialmente na Inglaterra, Alemanha, Itália e Catalunha. Mas é inegável que se generalizava então à figura dos servi casati, escravos estabelecidos e fixados num pedaço de terra. Dessa forma a própria palavra servus (escravo) passou a designar outra realidade jurídica, expressando aquela transformação socioeconômica — a do servo.
A produção dos domínios não apresentava grandes novidades em relação à agricultura da Antigüidade. A terra era trabalhada quase sempre no sistema bienal ou trienal.
O setor secundário ressentia-se da fraqueza demográfica e da medíocre produção agrícola. O primeiro fator roubava-lhe mão-de-obra e especialmente consumidores. O segundo limitava o fornecimento de matérias-primas. O artesanato dos séculos IV-X estava concentrado nos domínios, que com sua tendência à auto-suficiência procurava produzir ali mesmo tudo que fosse possível. A mão-de-obra era predominantemente escrava, vivendo na terra indominicata daquilo que o senhor lhe entregava, trabalhando nas oficinas com ferramentas e matérias-primas fornecidas por ele. A partir do século VIII havia também um pequeno grupo de artesãos assalariados, que se deslocavam de domínio em domínio.
O artesanato urbano, por sua vez, estava limitado pelas condições das cidades da época.
O setor terciário limitava-se praticamente ao comércio.
O comércio interno também se viu limitado, mas não paralisado. Se as dificuldades de produção, de um lado, restringiam as trocas por gerar poucos excedentes, de outro lado tornavam necessário que uma região com problemas temporários procurasse determinados produtos básicos em outras. Quando um domínio tinha certo excedente, ele era comercializado, diante da impossibilidade de se estocar.
Das três funções atribuídas à moeda, apenas uma foi importante naquele período. Primeiramente, ela é instrumento de medida de valor, ou seja, um padrão para medir o valor de bens e serviços adquiríveis, simplificando a relação pela qual determinada mercadoria pode ser trocado por outra. Em segundo lugar, a moeda é instrumento de troca, porque, não sendo ela própria consumível, pode, graças à sua aceitabilidade geral, servir de intermediária entre bens que se quer trocar. Por fim, ela é instrumento de reserva de valor, já que sem perder as funções anteriores pode ser guardada para a qualquer momento satisfazer certas necessidades. Este papel da moeda foi acentuado nos séculos IV-X devido à pequena disponibilidade de bens.
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O Crescimento Dos Séculos XI-XIII
A Idade Média Central conheceu importantes mudanças, a passagem da agricultura dominial para a senhorial. Havia dois tipos básicos delas, ambas de concessão pouco onerosa para o camponês, a censive e a champart. Na primeira, mais comum e difundida, em troca do usufruto da terra o camponês devia uma pequena renda fixa, o censo, pago em dinheiro ou em espécie. Na tenência champart (de campi pars, “parte da colheita”), a renda devida pelo camponês ao senhor não era fixa, mas proporcional ao resultado da colheita. De maneira geral, a taxa era de 10% na triticultura, de 16% a 33% na viticultura e na criação.
Não só os lotes camponeses viram sua área diminuir na Idade Média Central. A reserva senhorial também se viu reduzida em razão de vários fatores. Primeiro, a necessidade de criação de novas tenências camponesas, o que apenas o desmembramento dos mansos não fazia na quantidade desejada. Segundo, o progresso das técnicas agrícolas permitia ao senhor obter maior produção com menos terra. Terceiro, os rendimentos senhoriais vinham então bem mais do exercício dos direitos de ban do que da exploração direta do solo (daí as baixas exigências feitas aos camponeses em troca de suas tenências). Quarto, na nova ordem social que se implantava desde fins do século X — o feudalismo — para estabelecer relações de vassalagem o senhor cedia terras sob forma de feudo.
Não se deve, portanto, confundir senhorio e feudo. O primeiro era a base econômica do segundo, este a manifestação político-militar daquele. O senhorio era um território que dava a seu detentor poderes econômicos (senhorio fundiário) ou jurídico-fiscais (senhorio banal), muitas vezes ambos ao mesmo tempo. O feudo era uma cessão de direitos, geralmente mas não necessariamente sobre um senhorio. Havia regiões senhorializadas e não feudalizadas (como a Sardenha), mas não existiam regiões feudalizadas sem ser senhorializadas.
Em razão disso, o regime de mão-de-obra também se modificou em relação ao da agricultura dominial. A escravidão praticamente desapareceu no norte europeu, sobrevivendo apenas em algumas regiões mediterrânicas. O segmento de trabalho assalariado expandiu-se, em especial no século XII, graças ao barateamento da mão-de-obra resultante do aumento populacional. O servo tornou-se o principal tipo de trabalhador, complementando um processo bem anterior.
Em muitas regiões difundiu-se a prática de transformar a obrigação de serviços em pagamento monetário, com o qual o senhor contratava assalariados, cujo trabalho rendia o dobro do servil.
A produção cresceu em virtude de uma maior quantidade de mão-de-obra (incremento demográfico) trabalhando sobre uma área mais extensa (desbravamento de florestas e terrenos baldios). Mas também graças à difusão de diferentes técnicas: sistema trienal, charrua, força motriz animal, adubo mineral, moinho de água, moinho de vento.
Uma segunda transformação importante ocorrida nos séculos XI-XIII foi possibilitada pela existência de um excedente agrícola, o revigoramento do comércio. Este passou a desempenhar um papel central na vida do Ocidente, com repercussão muito além da esfera econômica.
Uma terceira transformação econômica da Idade Média Central, podemos chamar de Revolução Industrial medieval. Seu ponto de partida foi o crescimento demográfico e comercial, fomentador do desenvolvimento urbano. Estimuladas pela chegada de camponeses que conseguiam romper os laços servis, as cidades localizadas próximas a rios ou estradas freqüentadas por comerciantes logo começaram a crescer.
Com presença mais ou menos generalizada, sem dúvida as duas maiores indústrias medievais foram a da construção e a têxtil. A primeira delas beneficiou-se não só do crescimento populacional, mas também da prática social ostentatória que levava o clero e a aristocracia laica a construir cada vez mais e maiores igrejas, mosteiros, castelos. Buscando superar sua origem humilde, também a burguesia freqüentemente erguia construções imponentes.
A produção industrial nas cidades estava organizada em associações profissionais que chamamos de corporações de ofício, conhecidas na Idade Média apenas por “ofícios” (métiers na França, ghilds na Inglaterra, Innungen na Alemanha, arti na Itália). Suas origens são controvertidas, mas as razões para o agrupamento são claras: religiosa, daí muitas vezes ter derivado de confrarias, isto é, de associações que desde o século X existiam para cultuar o santo patrono de uma determinada categoria profissional e para praticar caridade recíproca entre seus membros; econômica, procurando garantir para eles o monopólio de determinada atividade; político-social, com a plebe de artesãos tentando se organizar diante do patriciado mercador que detinha o poder na cidade.
Em cada oficina o mestre trabalhava com alguns outros artesãos. Os jornaleiros (ou companheiros) eram assalariados que ganhavam em dinheiro e em espécie, pois viviam na casa do mestre. Os aprendizes, apenas um ou dois por oficina, eram adolescentes que procuravam iniciar-se nos segredos da profissão, vivendo para isso ao lado do mestre e pagando a ele pelo aprendizado, pelo alojamento e pela alimentação.
Outra importante transformação ocorrida na Idade Média Central foi uma acentuada monetarização da economia. Um primeiro problema era a grande diversidade, de moedas senhoriais, cada uma delas circulando numa área restrita. Um segundo problema era o baixo valor das espécies, resultado da reforma monetária carolíngia do século VIII, que implantara o monometalismo de prata: o denarius, moeda de pequeno valor, adequava-se melhor àquela economia pouco produtiva e de lenta circulação.
De um lado, a solução veio do fortalecimento do poder monárquico que então começava a ocorrer. De outro, os metais preciosos que tinham sido entesourados foram aos poucos reentrando em circulação. Graças à expansão mercantil, entre início do século XII e meada do século XIII um afluxo de ouro muçulmano contribuiu para alargar o estoque metálico ocidental. Graças às novas técnicas de mineração, cresceu bastante a produção de prata da Europa central.
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O Pré-Capitalismo Medieval
Em suma, a Idade Média Central foi uma época de mudanças, de expansão econômica, o que levou parte da historiografia por muito tempo a falar num “capitalismo medieval”. Contudo, adotando-se uma definição ampla de capitalismo sistema econômico centrado na posse privada de capital (mercadorias, máquinas, terras, dinheiro, conhecimento técnico) empregado de maneira a se reproduzir continuamente, ficando os desprovidos dele obrigados a vender sua força de trabalho — poderíamos talvez aceitar sua existência nos últimos séculos da Idade Média. Ele coexistia com o sistema doméstico, representado por pequenos artesãos independentes, e com o sistema senhorial, baseado em mão-de-obra dependente.
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A Depressão De Fins Da Idade Média
A Baixa Idade Média, por fim, inaugurou um período de crise generalizada, facilmente perceptível no aspecto econômico. Sem dúvida, podemos afirmar que após uma fase A de crescimento econômico (1200-1316) a Europa ocidental entrou numa fase B depressiva, que se estenderia até fins do século XV no sul e princípios do XVI no centro e no norte.
De qualquer forma, a crise resultou dos próprios princípios da economia extensiva e predatória da fase A. ela fundamentava-se em N (recursos naturais) e T (força de trabalho) abundantes, e um K (capital) proporcionalmente pequeno. Ou seja, enquanto ainda havia terras férteis disponíveis e mão-de-obra em quantidade para trabalhá-las, o sistema funcionou bem. Mas a riqueza social global pouco crescia por falta de reinvestimento. Logo, como N e T não poderiam crescer indefinidamente, mais cedo ou mais tarde viria à crise.
No setor primário, a produção era relativamente estática (limites técnicos da agricultura medieval) e o consumo dinâmico (crescimento populacional). No setor secundário, cada indivíduo gastava mais com alimentação e menos no consumo de bens industriais. O setor terciário ressentiu-se disso tudo, ocorrendo uma redução da margem de lucro tanto das atividades comerciais quanto das financeiras.
Uma das maiores fragilidades e fonte de graves problemas econômicos eram as constantes mutações monetárias empreendidas pelos soberanos. Sempre necessitados de dinheiro, os monarcas diminuíam a proporção de metal precioso das moedas e mantinham seu valor nominal, cunhando assim um maior número de peças com a mesma quantidade de metal nobre.
As causas dessa política monetária eram várias. Uma, as necessidades geradas pela guerra, pela própria retração comercial, a escassez metálica, a lentidão da circulação monetária, da procura, por fim, o entesouramento.
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Capítulo III - As estruturas políticas
Por muito tempo a História Política teve seus estudos voltados apenas para a camada dirigente. O primeiro passo na direção dessa Nova História Política foi dado em 1924 por Marc Bloch com uma obra tão pioneira, Os reis taumaturgos. Desde então, nessa sua nova roupagem, a História Política não se preocupa mais em descrever dinastias, reinados e batalhas. Ela coloca a ênfase em dois principais campos de estudo, o papel do imaginário na política e as relações entre nação e Estado.
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Política e imaginário
Seguindo os antropólogos, sociólogos e politicólogos, os historiadores passaram a ver a política como à forma básica de organização de qualquer grupo humano, como o instrumento minimizador dos conflitos inerentes a toda sociedade.
De fato, nas sociedades arcaicas, com visão monista do universo, sem fazer distinção entre natural e sobrenatural, indivíduo e sociedade, a realeza desempenhava um papel harmonizador, integrador do homem no cosmos. Na Idade Média o monarca, sem ser deus ou sequer sacerdote, como nas civilizações da Antigüidade, tinha inquestionável caráter sagrado.
Todo rei para ser visto como tal precisava ser submetido ao rito da unção com óleo, sacralizava o monarca, tornava-o um eleito de Deus.
Outros interessantes exemplos das relações entre política e imaginário têm nos reis, históricos ou míticos, que teriam desaparecido sem morrer e que retornariam quando seus povos deles precisassem. A crença nesses monarcas messiânicos e milenaristas tanto podia legitimar seus sucessores quanto servir de contestação ao governante do momento.
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Nação e Estado
Pelo menos até o século X, “nação” tinha conotação apenas étnica: natione vem de “nascimento”. Na Primeira e na Alta Idade Média, prevaleceu o princípio jurídico germânico da personalidade das leis, quer dizer, cada pessoa era regida pelos costumes de seu povo independentemente do lugar em que estivesse. O princípio jurídico romano da territorialidade das leis, ou seja, a submissão aos costumes locais, qualquer que fosse a origem da pessoa, reganharia força aos poucos, sobretudo a partir do século XII. Somente então “nação” passou a ter caráter também geográfico e político.
No Império Carolíngio alguns fatores permitiram o desenvolvimento de consciências étnicas: a pretensão a certo centralismo administrativo, a conquista de novos territórios, o progresso dos falares locais diante do recuo do latim. A fragmentação do império em 843 expressava e reforçava aquela situação, estimulando a formação dos nacionalismos nos séculos seguintes.
A evolução do Estado medieval não é menos problemática. Apesar de a palavra existir desde o latim clássico (no qual status significa “modo de ser”, “estado”), apenas a partir de meados do século XIII ela começou a ganhar o sentido atual de corpo político submetido a um governo e a leis comuns, e somente em fins do século XV essa acepção tornou-se usual. O Estado-nação progrediria na Baixa Idade Média, tanto no plano prático (exércitos nacionais, protecionismo econômico) quanto no simbólico (surgimento das bandeiras, do conceito de fronteira).
No século IX, restabeleceu-se uma relativa unidade com o Império de Carlos Magno, que absorveu, mas não eliminou outros reinos formados no período anterior. Nos séculos X-XIII, o Império tornou-se apenas uma ficção, uma idealização, pois na prática ocorria uma profunda fragmentação política substantivada nos feudos, porém limitada pelos laços de vassalagem, que permitiriam às monarquias recuperar aos poucos seus direitos. Nos séculos XIV-XVI, o processo de revigoramento das monarquias acelerou-se, estimulado pela crise global que fazia a sociedade depositar suas esperanças de recuperação no Estado.
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A fragmentação da Primeira Idade Média
A crise do século III já mostrara a fraqueza das instituições políticas romanas. As lutas pelo trono eram freqüentes; -, as intervenções militares também. Cada exército provincial pretendia dar o título imperial ao seu comandante para obter maiores vantagens: naquele período de “anarquia militar”.
As reformas políticas de Diocleciano e Constantino repuseram em mãos imperiais um grande poder, porém suas reformas sociais e econômicas indiretamente e em longo prazo anularam aquela recuperação. Os latifundiários não só se tornavam mais ricos como passavam aos poucos a ter atribuições estatais dentro de suas propriedades. A cada vez mais constante penetração de germânicos em território romano gerava uma insegurança que reforçava aquela tendência. O Estado ia perdendo as possibilidades de uma atuação efetiva. Ocorria um claro processo de desagregação política.
Os germanos não tinham nem Estado nem cidades, sendo a tribo e a família as células básicas de sua organização política. As relações sociais entre eles não se regiam pelo conceito de cidadania, mas de parentesco. Assim, ao se sedentarizarem, ocupando cada tribo uma parcela do Império Romano, eles vieram a substituir um Estado organizado e relativamente urbanizado. Não tendo instituições próprias para desempenhar tal tarefa, adotaram as que estavam à mão, e que bem ou mal tinham funcionado por longo tempo. O rei ostrogodo Teodorico (474-526) pensou numa espécie de confederação germânica sob o domínio de seu reino. A idéia de uma confederação germânica não era absurda, mas precoce, na época de Teodorico.
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A renovação imperial carolíngia
As condições para tanto estariam reunidas apenas no reino franco do século VIII, na figura de Carlos Magno. Em primeiro lugar, pelo fato de ele ter a anuência da Igreja para dar aquele passo. Em segundo lugar, as relações do Ocidente com Bizâncio estavam bastante abaladas naquele momento, de forma que não havia a preocupação dos três séculos anteriores em respeitar os direitos bizantinos.
O território estava dividido em centenas de condados, de extensão variável, cada um deles dirigido por um conde, nomeado pelo imperador. O conde representava o poder central em tudo, publicando as leis e zelando pela sua execução, estabelecendo impostos, dirigindo trabalhos públicos, distribuindo justiça, alistando e comandando os contingentes militares, recebendo os juramentos de fidelidade dirigidos ao imperador. Em troca recebia uma porcentagem das taxas de justiça e, sobretudo terras entreguem pelo soberano.
Essa prática revelou-se insuficiente para superar a fraqueza estrutural do Império Carolíngio, o que levou, em 843, à sua fragmentação por meio do Tratado de Verdun, assinado entre três netos de Carlos Magno. Nele aparecia o primeiro esboço do futuro mapa político europeu. O tratado estabeleceu dois grandes blocos territoriais, étnicos e lingüísticos (dos quais surgiriam às futuras França e Alemanha) e uma longa faixa pluralista, composta de uma zona de personalidade definida (Itália do norte), zonas multilingüistas que sofreriam o poder de atração daqueles primeiros blocos (futuras Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Suíça), zonas intermediárias que seriam objeto de longas disputas (Alsácia, Lorena, Trieste, Tirol).
O fato de o Império não ter unidade orgânica, assentando-se sobre dois princípios contraditórios: o universalismo das tradições romana e cristã e o particularismo tribal germânico. A diversidade étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito sujeita a flutuações conforme a personalidade do soberano. Um segundo fator foi à difusão da vassalagem, por meio da qual Carlos Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num vínculo que manteria o predomínio imperial. A relação vassálica implicava, porém, a entrega por parte do soberano de terras e privilégios políticos que na verdade o enfraqueciam. Naquela economia essencialmente agrária, ao ceder terras para os nobres o imperador precisava conquistar novas áreas, mas para tanto dependia do serviço militar daqueles mesmos elementos. Surgia um círculo vicioso difícil de ser rompido.
Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão do poder temporal e do poder espiritual na figura do imperador. No seu papel militar, pela tradição germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro e obtentor de pilhagens; no seu papel religioso, pela tradição cristã, ele deveria ser o mantenedor da paz e da justiça. Frágil equilíbrio.
O imperador fez com que a expansão cristã fosse realizada por intermédio de missões religiosas, e não mais de conquistas militares. O soberano ficou assim privado dos proventos da pilhagem, de forma que precisava remunerar os vassalos com suas próprias terras, esgotando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu poder.
Por fim, as novas invasões dos séculos IX-X contribuíram para mostrar a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vikings, que descendo da Escandinávia penetravam pelos rios com seus barcos leves e ágeis, não permitia a defesa por parte daquele exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras militares. Ficava patente a impotência dos soberanos, e cada região organizava sua própria defesa, em torno da nobreza local. Era a região, portanto, que passava a definir seu próprio destino. A Europa cobria-se de castelos. O poder se fragmentava.
A partir de então, estavam presentes os personagens políticos que se manteriam em cena até o fim da Idade Média: o Império, a Igreja, as monarquias, o feudalismo e — um pouco mais tarde — as comunas.
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Os poderes universalistas
Por causa de problemas dinásticos, tal título deixou de ser utilizado de 924 a 962, quando se deu a chamada “segunda renovação do Império”, com Oto. Depois de ter consolidado seu poder no reino alemão, ele derrotou os magiares e eslavos, pacificando aquela região e ganhando um prestígio muito grande em toda a Cristandade*. Intervindo na política italiana, ele casou-se com a herdeira do trono daquele território e proclamou-se rei também ali. O papa, precisando de ajuda para superar problemas na Itália central, buscou seu apoio. Enfim, Oto I conseguiu reunir todas as condições para ser coroado imperador pelo pontífice. Renascia o Império Franco, que em 1157 passou a se chamar Santo Império e a partir de 1254, Santo Império Romano Germânico.
O Império resultava da reunião de três coroas, da Alemanha, da Itália e da Borgonha. E o monarca era fraco em todas. Na Alemanha, feudalizada tardiamente no século XII, a prática feudal não trabalhava a favor do Estado, como ocorria na França: o rei não podia manter os feudos confiscados, sendo obrigado a reenfeudá-los após um ano e um dia. Na Itália, o território era descontínuo, compreendendo o norte peninsular e algumas regiões meridionais, pois o centro era papal e o extremo sul bizantino. Na Borgonha, o poder da nobreza local já era bastante forte quando o reino se tornou em 1033 um Estado autônomo no seio do Império.
Sem poder efetivo nesses reinos, o soberano sempre buscou o título imperial na esperança de com ele reforçar sua atuação naqueles locais. Apenas o papa poderia coroar um imperador, mas não estava interessado na existência de um que fosse forte, pois ele próprio tinha pretensões universalistas, considerando-se o legítimo herdeiro do Império Romano. Daí os sérios conflitos entre Império e Igreja, que se arrastariam por longo tempo.
A Igreja, por sua vez, tornou-se claramente uma personalidade política desde que se corporificou com a Doação de Pepino. Isto é, ao receber do chefe franco em 754-756 os territórios que ele conquistara aos lombardos, nascia o Estado Pontifício. Contudo, tal fato trazia em si uma submissão implícita da Igreja ao poder monárquico, de quem recebia aquelas terras. Contra isso é que se forjou o documento conhecido por Doação de Constantino. Por este texto apócrifo, o imperador romano Constantino teria supostamente transferido para o papado, no século IV, o poder imperial sobre todo o Ocidente. A questão ficava, dessa forma, invertida: Pepino nada estaria doando à Igreja, mas apenas restituindo a ela uma parte do que lhe pertencia. A Igreja, depositária do título imperial, entregara-o ao rei franco por serviços prestados, podendo, portanto, retoma-lo e atribuí-lo a quem quisesse.
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Os poderes nacionalistas
Ao promover a unção de Pepino, em 751, a Igreja justificara o poder monárquico. Em parte isso ocorrera por circunstâncias, já que o papa necessitava do apoio franco contra os lombardos.
Apesar de aceitar a sacralidade monárquica, a Igreja velava para que tal poder não se tornasse excessivo, daí a farta literatura conhecida por “espelho dos príncipes”. Literatura de exortação aos monarcas, de quem se exigiam qualidades cristãs e a quem se estabeleciam limites de atuação.
Esse aspecto contratual vinha dos bárbaros germanos, para quem o rei, eleito, estava de certa forma subordinado ao direito costumeiro da tribo. Este determinava os poderes e atribuições do rei, e naturalmente não podia ser alterado por ele sem o consentimento da comunidade por intermédio da assembléia dos guerreiros. Com o mesmo espírito, no feudalismo o vassalo que não cumpria suas obrigações podia perder seu feudo, depois de julgado por seus pares no tribunal do senhor. Correspondentemente, o senhor que desrespeitava suas obrigações via o vassalo romper o contrato feudo-vassálico (diffidatio). Assim, o rei feudal como suserano mantinha relações contratuais apenas com seus vassalos diretos.
Por outro lado, a partir da própria fragmentação política feudal desenvolvia-se um elemento que acabaria por ter um papel reaglutinador. Os bárbaros tinham possuído certa solidariedade de tribo ou de povo, que, contudo não se associara a um território por causa de seu nomadismo. Com a penetração e fixação em terras do antigo Império Romano, aos poucos surgiram vínculos entre os habitantes, seus costumes, suas tradições e o território ocupado. O primeiro resultado disso é constatável séculos depois, quando em 813 o concilio de Tours recomendava ao clero traduzir os sermões em língua vulgar para que fossem mais bem compreendidos.
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Os poderes particularistas
O feudalismo, do ponto de vista político, representava uma pulverização do poder que respondia melhor às necessidades de uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária (Império Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings, magiares etc). Na verdade, as tendências centrífugas vinham desde o século IV, quando manifestaram e aceleraram o debilitamento do Império Romano. Naquele momento, com a busca da auto-suficiência por parte dos latifúndios, com a insegurança gerada pela penetração dos bárbaros e com as dificuldades nas comunicações, acentuou-se a ruralização da economia e da sociedade, levando os representantes do imperador a se verem limitados nas suas possibilidades de atuação. Os grandes proprietários rurais puderam, assim, usurpar atribuições do Estado.
A formação dos reinos germânicos em nada alterou a essência daquele processo. Naquela economia fundamentalmente agrária, os monarcas remuneravam seus servidores e guerreiros com terras, às quais se concediam muitas vezes imunidades. O detentor da terra desempenhava ali o papel de Estado, taxando, julgando, convocando.
A concessão e recepção de feudos e sua contrapartida (o serviço militar) representavam uma forma de divisão da riqueza (terra e trabalhadores) sempre dentro da mesma elite. O poder político estava fracionado para que pudesse ser mantido.
O surgimento das comunas representou um papel interessante e importante. De um lado, aquele processo negava os princípios feudo-clericais. O tipo mais difundido era a comuna citadina, a comunidade burguesa que se organizava para defender seus interesses comerciais diante dos abusos feudais, como confiscos ou taxações excessivas. No começo do século XI, ela pretendia apenas escapar à arbitrariedade senhorial. Cerca de 100 anos depois, ela passou a buscar autonomia, que se comprava ou arrancava à força, dependendo de cada caso.
Nascia então a verdadeira comuna, ou cidade-estado. Seu modelo acabado estava na Itália, região mais urbanizada do Ocidente, onde as longas lutas entre Império e Igreja tinham criado um vácuo de poder preenchido pelas associações burguesas. As comunas representaram uma novidade política não apenas na sua relação com os poderes tradicionais, mas também na sua organização interna. No primeiro momento seu regime político foi o consulado, com um grupo de funcionários (cônsules) eleitos defendo poderes executivos e judiciais. Para controlá-lo, havia uma assembléia inicialmente formada por todos os cidadãos e depois por certo número deles escolhido por eleição ou sorteio. Num segundo momento, diante das crescentes disputas internas da camada dirigente, passou-se a entregar o poder a uma só pessoa, de fora da cidade e, portanto neutra nos seus conflitos, o podestà (“regedor”).
O grau de autonomia conseguido pelas comunas foi muito variável conforme o tempo, o local e o tipo de associação. E importante lembrar que nem todas as comunas eram urbanas. As rurais, quase sempre muito modestas, nasciam da associação de aldeias contra o seu senhor. O espírito era o mesmo das comunas urbanas, mudavam os objetivos (acesso a áreas fechadas pelo senhor, reação ao desrespeito por costumes locais etc.) e as condições de alcançá-los (mais pobre que a cidade, o campo dificilmente podia comprar sua liberdade).
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O jogo político medieval
Os poderes universalistas (Igreja e Império) estavam em choque constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam — a herança do Império Romano — somente um deles poderia ter sucesso. Assim, ambos fracassaram, permitindo a emergência de poderes particularistas (feudos e comunas) e nacionalistas (monarquias). Mais do que isso, quando ficou patente em fins da Idade Média, que o futuro pertencia a estas últimas, duas nacionalidade já tinham perdido sua oportunidade histórica de organizar Estados centralizados. A luta entre os universalistas debilitara as bases territoriais e nacionais da Itália (centro nevrálgico da Igreja) e da Alemanha (base do Sacro Império).
Dessa forma, por muito tempo elas permaneceram apenas realidades geográficas, não políticas. Perdidas as chances de obter colônias no Novo Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos XVIII-XIX, secundarizadas na partilha da África e da Ásia do século XIX, aquelas nacionalidades sentiam cada vez mais a necessidade de se corporificar politicamente.
Apesar das transformações políticas dos séculos XI-XIII, na Baixa Idade Média os vínculos feudais continuavam a tencionar as relações entre vários Estados: o rei da Inglaterra era vassalo francês, o reino português surgira de uma secessão de Castela, a Escócia estava ligada à Inglaterra, e Flandres à França. Todas essas questões pendentes, ou mal resolvidas, vieram à tona com o grande conflito nacionalista da Idade Média, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Mas esta também envolveu questões feudais internas, pois cada vez mais se restringia o papel social da nobreza, que era cumprido através de guerras locais, proibidas pelas monarquias, daí a necessidade de guerras mais amplas, entre os Estados.
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Capítulo IV - As estruturas eclesiásticas
A linha tendencial da Igreja na Idade Média revela-se com clareza. Num primeiro momento, a organização da hierarquia eclesiástica visava à consolidação da recente vitória do cristianismo. A seguir, a aproximação com os poderes políticos garantiu à Igreja maiores possibilidades de atuação. Em uma terceira fase, o corpo eclesiástico separou-se completamente da sociedade laica e procurou dirigi-la, buscando desde fins do século XI erigir uma teocracia que esteve em via de se concretizar em princípios do século XIII.
Contudo, por fim, as transformações que a Cristandade conhecera ao longo desse tempo inviabilizaram o projeto papal e preparou sua maior crise, a Reforma Protestante do século XVI.
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A formação da hierarquia eclesiástica na Primeira Idade Média
Nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa contradição, que, no entanto se revelaria a base de seu poder na Idade Média. Ao negar diversos aspectos da civilização romana, ela criava condições de aproximação com os germanos. Ao preservar vários outros elementos da romanidade, consolidava seu papel no seio da massa populacional do Império.
Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos poucos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século IV, identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religião oficial. A Igreja passava a ser a herdeira natural do Império Romano.
Para tanto, ela precisava ter sua própria hierarquia, realizando e supervisionando os ofícios religiosos, orientando quanto às questões de dogma, executando obras sociais, combatendo o paganismo. A concentração de todas essas atividades nas mãos de apenas alguns cristãos era aceita com naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que tal poder lhes fora atribuído pela própria Divindade: segundo o texto bíblico.
Apenas no século IV determinou-se que somente homens livres poderiam ingressar no clero, e proibiu-se a passagem direta do laicato para o episcopado, tornando-se necessário exercer antes uma função inferior. O sustento do clero advinha das esmolas dadas pelos fiéis, de acordo com o princípio de “quem serve ao altar vive do altar”. O celibato não era obrigatório, apenas recomendado, tendo surgido à primeira legislação a respeito na Espanha, onde o sínodo de Elvira em 306 proibiu o casamento aos clérigos sob pena de destituição.
Para a formação e organização da hierarquia eclesiástica acabou contribuindo bastante, paradoxalmente, um elemento que punha em risco a própria existência da Igreja: as heresias. Estas eram produto do sincretismo que fazia a força, mas também a fraqueza do cristianismo. Ao reunir e harmonizar componentes de várias crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível de interpretações discordantes do pensamento oficial do clero cristão. Do ponto de vista deste, heresia era, portanto, um desvio dogmático que colocava em perigo a unidade de fé.
Qualquer idéia que parecesse herética era, então, submetida à apreciação do bispo local. Este geralmente colocava a questão perante seus pares nas assembléias episcopais, ou sínodos, que se reuniam desde meados do século II para tratar de tudo que interessasse à Igreja local. Mas as questões de doutrina eram debatidas, sobretudo nos concílios ecumênicos, que congregavam bispos de todas as regiões, expressando a universalidade da Igreja.
Paralelamente a esse clero voltado para atividades em sociedade — ministrar sacramentos, orientar espiritualmente, ajudar os necessitados — e por isso chamado de clero secular, surgia um de características diversas. Era constituído por indivíduos que buscavam servir a Deus vivendo em solidão, ascese e contemplação: os monges, do grego monakbos, “solitário”.
A tradicional trilogia monástica — castidade, pobreza e obediência — estava presente de forma concreta e equilibrada no cotidiano dos beneditinos. O abade eleito pelos monges recebe deles total obediência, que representa ao mesmo tempo uma manifestação de pobreza, pois não se pode dispor sequer da própria vontade. A pobreza, por sua vez, não é entendida como falta ou miséria, mas posse do estritamente necessário, daí o monge não poder ter nada de seu, apesar de o mosteiro possuir propriedades recebidas em doação. A castidade, sendo negação da posse do próprio corpo, também é uma forma de pobreza. Sendo negação do usufruto do próprio corpo, é uma forma de obediência. A obediência, sendo uma renúncia, é ainda uma forma de castidade.
Desde fins do século III ocorria forte expansão do cristianismo nas cidades, onde a crise do Império Romano era mais sentida e, portanto, as condições para a cristianização mais favoráveis. O campo, sempre mais conservador, mantinha-se preso às suas antigas crenças, mesmo pré-romanas, daí paganus (“camponês”) ter sido identificado ao não-cristão. Com a decadência urbana e o conseqüente êxodo, o cristianismo penetrou no campo.
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A submissão ao Estado na Alta Idade Média
Estreitavam-se, portanto, as relações Estado-Igreja, com predomínio do primeiro na época de Carlos Magno. Os clérigos participavam então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, os cânones ganhavam força de lei. O monarca presidia os sínodos, punia os bispos, regulamentava com eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, intervinha mesmo em questões doutrinais. Os bispos eram nomeados pelo soberano, contrariamente à tradição canônica, mas o fato não era considerado uma usurpação, e sim um serviço prestado pelo monarca à Igreja, quase um dever do cargo. Suas conquistas territoriais abriram caminho para a cristianização dos saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e boêmios. Em virtude da crescente extensão do Império, ele instituiu muitas paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses.
Graças a isso, a Igreja enriqueceu ainda mais. No começo do século V ela tinha sido a segunda maior proprietária imobiliária do Ocidente, depois do Estado Romano, e tornou-se a maior desde fins daquele século, com o desaparecimento do Império. De fato, a chegada dos bárbaros não a prejudicou, pelo contrário, muitos indivíduos, diante da insegurança geral de então, entregaram suas terras ao patrocinium da Igreja.
Na terceira fase das relações Carolíngios-papado, completou-se a reforma monástica sob o governo de Luís, o Pio, que encarregou Bento de Aniane de realizá-la. Este, em 817, procurou inicialmente combater o relaxamento que tomara conta da vida monástica, impondo certa uniformização na aplicação da regra beneditina. Desde então, os monges entregaram-se especialmente ao culto. O clero secular retomava a direção do movimento de cristianização e o episcopado aumentava seu poder político.
A partir de inícios do século IX, inspirada no Direito Canônico e em Santo Agostinho, ganhou terreno à teoria do agostinianismo político, que afirmava a superioridade espiritual sobre a temporal, dos bispos sobre os reis. O movimento cultural chamado de Renascimento Carolíngio elevara o nível dos bispos. Tal teoria contribuiu para aumentar a autonomia da nobreza, o que teve reflexos negativos sobre a Igreja, com a generalização do sistema de “igreja própria”, já existente no século VII e que se estenderia até o século XII. Por ele, quando um latifundiário levantava uma igreja ou mosteiro em suas terras, mantinha esse bem como plena propriedade, podendo vendê-lo, doá-lo ou transmiti-lo em herança. Podia apropriar-se das esmolas e dízimos recebidos pela igreja ou mosteiro. Podia, sobretudo, nomear quem quisesse como sacerdote, função que desde o século VIII era atribuída como beneficiam ou feudo.
A tentativa de teocracia papal na Idade Média Central
Numa reação contra aquele estado de coisas, na Idade Média Central a Igreja teve como objetivo alcançar a autonomia e, sobretudo — concretizando o agostinianismo político e impedindo que prosseguisse a sujeição aos leigos — passar a dirigir a sociedade. O primeiro passo em direção àquela dupla meta tinha sido dado em princípios do século X, com a fundação do mosteiro de Cluny, na Borgonha. Adotando a regra beneditina, mas interpretando-a de forma própria, Cluny valorizava os trabalhos litúrgicos, que absorviam a quase totalidade do tempo dos monges. O trabalho manual foi abandonado aos camponeses de seus senhorios, o trabalho intelectual relegado a segundo plano. Vivendo sob rígida disciplina, cm ascetismo, silêncio e isolamento, os monges cluniacenses recuperaram o prestígio da vida religiosa.
Buscando restabelecer a paz social (não a igualdade, concepção estranha à época) e tornar-se sua guardiã, a Igreja promoveu em fins do século X o movimento conhecido por Paz de Deus. Ameaçados de excomunhão e de suas decorrentes punições sobrenaturais, os guerreiros foram pressionados a jurar sobre relíquias que respeitariam as igrejas, os membros do clero e os bens dos humildes.
Tal movimento estendeu-se até por volta de 1040, sem conseguir pacificar completamente a sociedade cristã ocidental. O clima de violência expressava as necessidades da aristocracia laica, mais numerosa devido ao crescimento demográfico, e a conseqüente disputa entre ela e a aristocracia eclesiástica pela posse das riquezas geradas pelos camponeses. Diante disso, seguindo o mesmo espírito da Paz de Deus, mas buscando criar novos mecanismos de controle sobre o comportamento da elite laica, a Igreja estabeleceu em princípios do século XI a Trégua de Deus.
Como a idéia básica da Paz e da Trégua de Deus era a preservação da ordem religiosa, social e política desejada por Deus, entende-se que a partir de fins do século XI ela tenha derivado para a idéia de Guerra Santa, que procurava impor aquela ordem dentro (Cruzada contra hereges) e fora (Cruzada contra muçulmanos) da Cristandade.
As Cruzadas deveriam funcionar não só como elemento de pacificação interna da Europa católica, levando para fora dela à irrequieta nobreza feudal, mas especialmente como um fenômeno aglutinador da Cristandade sob o comando da Igreja, acenava-se para seus participantes com a remissão dos pecados, a proteção eclesiástica sobre suas famílias e bens, a suspensão do pagamento de juros. Lutando sob a égide da Igreja, os cruzados deveriam agir como guerreiros imbuídos de seus ideais.
No século XIII estavam reunidas todas as condições para o exercício do poder papal sobre a comunidade cristã. Em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções, reconhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga em vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento, abstinências), regulamenta a atividade profissional (trabalhos lícitos e ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitudes), estipula os valores culturais.
Um claro sinal do alargamento das atribuições papais estava numa importante novidade, à exclusividade de canonização dos santos. Desde princípios do cristianismo, os mártires vitimados pelas perseguições romanas tornaram-se objeto de culto, sendo vistos como cristãos ideais, que tinham sacrificado suas vidas por fidelidade ao Deus único.
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A crise da Baixa Idade Média
A grande questão da Igreja na Baixa Idade Média foi, porém, um prolongamento da antiga disputa entre poder espiritual e poder temporal. Em fins do século XIII, o papa Bonifácio VIII, defensor da monarquia universal pontifícia, proibiu que os eclesiásticos fizessem doações sem autorização da Santa Sé e que os poderes laicos cobrassem taxas sobre bens da Igreja. Na França, em pleno processo de afirmação da monarquia nacional, o rei Filipe IV, em resposta, proibiu a saída de metais preciosos do país e baniu os coletores de impostos papais. Pouco depois, o monarca francês prendeu um bispo, levantando fortes protestos do papa. Filipe acusou Bonifácio de ter sido eleito papa ilegitimamente e em 1303 conseguiu prendê-lo na cidade de Anagni. Apesar de solto logo depois, o papa estava claramente desmoralizado, e o sonho da teocracia pontifícia falido.
A crise do pontificado e o desenvolvimento do nacionalismo, fenômenos, aliás, interligados, desenvolviam o sentimento de autonomia eclesiástica em diversos locais. Mesmo depois de reunificada pelo Concilio de Constança, havendo um só papa residindo na tradicional sede de Roma, a Igreja continuava abalada. Grandes problemas permaneciam, opondo concilio e papa, Igreja e monarquias, Estado Pontifício e Estados italianos, cultura cristã tradicional e nova cultura humanista. Assim, em 1517, exatamente 100 anos depois da volta do papado a Roma, começava o Protestantismo.
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Capítulo V - As estruturas sociais
A História Social total deve ser o objetivo último dos estudos históricos, não uma etapa da reconstituição do passado, um campo específico do saber.
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A redefinição da Primeira Idade Média
Os primeiros séculos medievais conheceram uma cristalização da hierarquia social, fenômeno que na verdade já se desenvolvia anteriormente, mas que se completou apenas no século IV. De fato, a crise geral que sacudiu a civilização romana no século III levara a uma limitação dos espaços de atuação individual e ao correspondente alargamento das funções do Estado.
As tentativas reformistas criaram uma enorme distância social entre as várias camadas. No topo da pirâmide estava a aristocracia senatorial, cinco vezes mais rica que a do século I. As camadas médias, rurais e urbanas, encolhiam. As primeiras, devido à generalização do patrocinium, laço de dependência que se criava entre um camponês livre e um grande proprietário. As camadas médias urbanas viam-se esmagadas por dois fatores. O primeiro deles — o processo de ruralização da sociedade romana — resultava de sua contradição básica: sendo escravista e imperialista, ela só poderia manter-se graças a novas conquistas que renovassem o estoque de mão-de-obra e trouxessem mais riquezas por meio de saques e tributos. Contudo, o escravismo e o imperialismo marginalizavam grande parte da população, que precisava ser sustentada pelo Estado.
O segundo fator que enfraquecia as camadas médias urbanas era um pesado conjunto de impostos que o Estado cobrava para tentar manter a própria vida citadina. Obrigados a contribuir na promoção de jogos circenses, na distribuição de trigo à população marginalizada e na realização de obras públicas, os curiales (espécie de aristocratas urbanos) procuravam fugir aos seus encargos. O Estado precisou proibir sua migração para o campo e mesmo sua entrada para a camada senatorial ou para o clero.
Na base da sociedade, os trabalhadores livres urbanos tiveram decretado a vitaliciedade e hereditariedade de suas funções, sendo reunidos em collegiae (corporações) de acordo com a especialização, para facilitar o controle estatal. Os trabalhadores livres rurais tendiam a se tornar dependentes dos latifundiários por meio do patrocinium e, sobretudo, do colonato. A criação dessa instituição era uma tentativa de responder a problemas colocados pela crise: atendia ao interesse dos proprietários em ter mais mão-de-obra, ao interesse do Estado em garantir suas rendas fiscais, ao interesse dos humildes e despossuídos por segurança e estabilidade.
Já no século III, precisando de soldados diante do retrocesso populacional, o Estado romano contratara muitos germanos, às vezes tribos inteiras. O pagamento por esse serviço militar era a entrega de lotes fronteiriços (hospitalitas), prática que se estendeu a todo o território romano com as invasões do século V.
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A aristocratização da Alta Idade Média
Como a terra era quase a única forma de riqueza da época, não existia uma camada urbana de comerciantes e artesãos que exercessem por conta própria e regularmente seu ofício, mas apenas uns poucos indivíduos dedicando-se àquelas atividades. A sociedade estava polarizada entre os proprietários fundiários, de um lado, e os camponeses despossuídos, de outro.
Dentre os primeiros, havia pequenos e médios proprietários, camponeses livres (pagenses) que trabalhavam sua terra com a ajuda de familiares e uns poucos escravos. Como todo homem livre, eles deviam (além do juramento de fidelidade ao soberano) serviço militar e judicial, encargos muito pesados para seus recursos.
A seguir vinham os colonos, que, apesar de serem juridicamente livres, cada vez mais sentiam a fraqueza da autoridade pública que deixava amplos poderes nas mãos dos grandes detentores de terras. Sua situação oscilava, conforme os momentos e os locais, entre a dos pagenses e a dos escravos. Por fim, havia uma mão-de-obra escrava.
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A feudo-clericalização dos séculos XI-XII
O que se deve chamar de feudalismo ou termo correlato (modo de produção feudal, sociedade feudal, sistema feudal etc.) é o conjunto da formação social dominante no Ocidente da Idade Média Central, com suas facetas política, econômica, ideológica, institucional, social, cultural, religiosa. Em suma, uma totalidade histórica, da qual o feudo foi apenas um elemento. No entanto — e procurando não perder essa globalidade de vista —, como examinamos cada uma daquelas facetas nos capítulos correspondentes, vamos aqui nos prender apenas à análise das relações sociais do feudalismo.
Ou melhor, do feudo-clericalismo. Realmente, este rótulo parece-nos mais conveniente, na medida em que explicita o papel central da Igreja naquela sociedade. Fato fundamental e geralmente pouco considerado.
Foi por intermédio dela que se deu a conexão entre os vários elementos (já anteriormente presentes) que comporiam aquela formação social. Foi ela a maior detentora de terras naquela sociedade essencialmente agrária, destacando-se, portanto, no jogo de concessão e recepção de feudos. Foi ela a controlar as manifestações mais íntimas da vida dos indivíduos: a consciência através da confissão; a vida sexual através do casamento; o tempo através do calendário litúrgico; o conhecimento através do controle sobre as artes, as festas, o pensamento; a própria vida e a própria morte através dos sacramentos (só se nascia verdadeiramente com o batismo, só se tinha o descanso eterno no solo sagrado do cemitério). Foi ela a legitimadora das relações horizontais sacralizando o contrato feudovassálico, e das relações verticais justificando a dependência servil.
Aliás, como produtora de ideologia, traçava a imagem que a sociedade deveria ter de si mesma.
Tínhamos, portanto, naquela sociedade de ordens, de um lado, duas camadas identificadas quanto às origens e aos interesses, detentoras de terra e, assim, de poder econômico, político e judicial (clérigos e guerreiros), de outro lado, uma massa formada principalmente por despossuídos e dependentes, os trabalhadores. Assim, davam-se três formas de relações sociais, uma horizontal na camada dominante, outra horizontal na camada dominada e outra vertical entre os dois grandes grupos.
A primeira forma ocorria pelo contrato feudo-vassálico. A segunda, por acordos para empreendimentos comuns, diante das dificuldades de um trabalhador realizar sozinho certas tarefas, como arar um campo ou arrotear uma área. A terceira, fundamental, estava na base da primeira (forma de a aristocracia dividir as terras e o produto do trabalho camponês) e da segunda (forma de os laboratores poderem concretizar seu papel social, de produtores).
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O feudo-aburguesamento dos séculos XII-XIII
O crescimento demográfico e econômico, as cidades da Idade Média Central revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços compulsórios da servidão a vida urbana oferecia muitos atrativos.
Mais do que isso, tornava-se burguês (habitante do burgo, ou seja, da cidade), o que significava uma situação jurídica própria, bem definida, com obrigações limitadas e direitos de participação política, administrativa e econômica na vida da cidade. E verdade que desde fins do século XII os imigrantes não encontravam nas cidades as oportunidades com que sonhavam, formando um proletariado que freqüentemente acabou por se chocar com a burguesia dona das lojas e oficinas. Mas, utopicamente, os centros urbanos continuaram a seduzir os homens do campo.
A grande síntese disso tudo talvez tenha sido o desenvolvimento do individualismo, com a conseqüente passagem da família patriarcal para a família conjugal e a correspondente valorização da mulher e da criança. Foi nas cidades que despontaram novos valores sociais, opostos aos coletivistas (interdependência das ordens) e machistas (predominância do clero celibatário e dos guerreiros). Na realidade, esse fenômeno social era reflexo c origem de um conjunto mais amplo de transformações, de uma revalorização do ser humano.
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A instabilidade dos séculos XIV-XVI
Na Baixa Idade Média, a passagem da sociedade de ordens para uma sociedade estamental, produto da própria dinâmica feudal, acelerou-se naquele contexto de crise generalizada. Com a quebra da rígida estratificação anterior, baseada num ordenamento divino da sociedade, o organismo social tornou-se determinável pelos próprios indivíduos.
A aristocracia, naturalmente, foi a mais atingida pelas transformações da época. As dificuldades da economia senhorial arruinavam muitas famílias nobres, que perdiam suas terras e se deslocavam para as cidades ou para as cortes principescas ou monárquicas. Dessa forma, a nobreza sofria certa descaracterização ou ao menos perdia alguns dos traços que tinham feito parte de seu poder e prestígio até então.
A burguesia, cujo aparecimento na Idade Média Central tinha expressado as transformações sociais então em gestação, consolidou-se com a crise aristocrática. Foi assim que se deu a penetração burguesa no campo, com a compra de terras, que ocorria pelo menos desde o século XIII acelerando-se na Baixa Idade Média.
Quanto à mão-de-obra urbana, a situação era mais homogênea e mais difícil. A crise não criou uma elite trabalhadora, como fizera no campo, apenas reforçou o poder da alta burguesia. A relativa alta de preços industriais, enquanto os preços agrícolas caíam, atraía muitos camponeses para as cidades. Dessa forma, aumentava a oferta de mão-de-obra urbana, o que permitia ao patriciado burguês pressionar os salários para baixo, rompendo a tendência altista gerada pela peste negra.
As revoltas urbanas, por sua vez, eram pelo controle do Estado, em processo de afirmação, fosse ele comunal, senhorial ou nacional.
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Capítulo VI - As estruturas culturais
Cultura era entendida como uma criação intelectual realizada por “grandes homens”, mais ou menos desvinculados do contexto histórico. E também como uma criação letrada, pois mesmo as artes, essencialmente visuais, pressuporiam certo conhecimento para ser “compreendidas”. No entanto, as transformações do último meio século nos veículos de divulgação cultural (rádio, televisão, cinema, jornais, revistas), e mais recentemente o diálogo da História com a Antropologia, romperam aquela visão estreita.
Para tanto, entenderemos cultura como tudo aquilo que o homem encontra fora da natureza ao nascer. Tudo que foi criado, consciente e inconscientemente, para se relacionar com outros homens (idiomas, instituições, normas), com o meio físico (vestes, moradias, ferramentas), com o mundo extra-humano (orações, rituais, símbolos). Esse relacionamento tem caráter variado, podendo ser de expressão de sentimentos (literatura, arte), de domínio social (ideologias), de controle sobre a natureza (técnicas), de busca de compreensão do universo (filosofia, teologia).
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As áreas culturais
De um lado, a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo menos até o século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social e latina do ponto de vista lingüístico. Conscientemente elaborada (mas sem deixar, é claro, de ser tributária da mentalidade), era formalmente transmitida (escolas monásticas, escolas catedralícias, universidades). Por isso, tendia a ser conservadora, a se fundamentar em autoridades.
De outro lado, estava a cultura que já foi chamada de popular, laica ou folclórica, e que preferimos denominar “vulgar”, pois para os medievais esta palavra rotulava sem ambigüidade tudo que não fosse clerical. A cultura vulgar era oral, transmitida informalmente (nas casas, ruas, praças, tavernas etc.) por meio de idiomas e dialetos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela expressava a mentalidade de forma mais direta, com menos intermediações, com menos regras preestabelecidas. Ideologicamente, ela se inclinava a recusar os valores e práticas oficiais. Ainda que muito presa às suas próprias tradições — que a Igreja tendia a tachar de superstições —, a cultura vulgar não estava fechada a outras influências.
A cultura erudita procurou apossar-se dos relatos míticos, promovendo e legitimando o registro escrito de alguns deles e controlando sua interpretação.
A cultura vulgar, por sua vez, pressionou ao longo da Idade Média para que certos ritos fossem criados ou modificados.
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A bipolarização da Primeira Idade Média
Na Primeira Idade Média, as dificuldades da época estabeleceram caracteres culturais que se manteriam, com variações de intensidade, nos séculos seguintes. Primeiro, alargamento do fosso entre a elite culta e a massa inculta. Segundo, este corte cultural não coincidia com a estratificação social: a linha de separação era entre clérigos e leigos, realidade sociocultural que ficou registrada no francês moderno clerc (“letrado”), no inglês clerk (“escrevente”) e no português “leigo” (ignorante). Terceiro, a cultura clerical era uma sistematização e simplificação da herança greco-romana, adaptada à situação de uma época convulsionada politicamente, enrijecida socialmente, empobrecida economicamente e, síntese disso tudo, limitada pelo seu “absolutismo religioso”. Quarto, a cultura vulgar regredira com as dificuldades materiais, a insegurança espiritual e a fusão com elementos bárbaros, daí a ressurgência de técnicas, crenças e mentalidades tradicionais, pré-romanas.
Em virtude desse clima cultural e da finalidade que se atribuía ao conhecimento, às ciências viam-se limitadas no seu desenvolvimento. Predominava a concepção de que a meta do homem era o Reino de Deus e de que a Revelação estava contida nas Sagradas Escrituras.
A Literatura também foi influenciada por aquela tendência a preservar e cristianizar obras antigas, mais do que a criar. Não havia preocupação com originalidade, apenas com a conservação da literatura clássica por meio de cópias realizadas nos scriptoria monásticos.
A arte ocidental dos séculos IV-VIII realizou uma síntese de elementos de origens diversas. Da arte romana clássica conservou-se algo das técnicas e das características arquitetônicas. Da arte oriental, com a qual se manteve contato mesmo após as invasões germânicas, através de mercadores e missionários, veio certa estilização e hieratismo das formas. Da
arte germânica, típica de povos nômades, aproveitou-se o caráter não figurativo e o geometrismo estilizado. Da arte céltica, através das iluminuras dos monges irlandeses, absorveu-se o uso de linhas abstratas, apenas ornamentais. Da arte cristã primitiva veio o essencial, isto é, a temática e o simbolismo. No todo, elementos que se completavam mais do que se negavam, tendo cada um deles peso variável conforme o gênero artístico (arquitetura, escultura, pintura, miniatura, mosaico etc.) e as condições locais (composição étnica, meio físico, época).
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A clericalização da Alta Idade Média
Entre as últimas décadas do século VIII e as primeiras do século IX, com a estreita relação entre Estado e Igreja que levou à constituição do Império Carolíngio, as manifestações da cultura vulgar foram de forma geral abafadas. A cultura clerical, mais do que nunca tornada oficial, foi produzida no âmbito do movimento que se convencionou chamar de Renascimento Carolíngio. Segundo o próprio Carlos Magno, seu objetivo era fazer com que “a sabedoria necessária à compreensão das Sagradas Escrituras não seja muito inferior à que deveria ser”. Melhorar o nível dos clérigos significava para a Igreja oferecer serviços religiosos mais elevados e para o Império servidores administrativos mais eficientes. Daí o alcance daquele movimento ter-se limitado a algumas centenas de pessoas, concentradas nas escolas monásticas e, novidade, numa escola criada no próprio palácio imperial. Diante de seus objetivos, a tônica não era criar, mas redescobrir, adaptar, copiar, por isso já se disse que “a Renascença Carolíngia, ao invés de semear, entesoura”.
Para acelerar essa atividade copista e minimizar os erros de transcrição, buscava-se já havia algum tempo desenvolver uma caligrafia menos desenhada, que apresentasse maior regularidade. Uma caligrafia mais prática, cursiva, que implicasse menor número de movimentos com a mão.
O reequilíbrio da Idade Média Central
Com as acentuadas transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas a partir do século XI, foi quebrada a clara predominância desfrutada pela cultura clerical na fase anterior. A cultura vulgar ressurgia com força. Em conseqüência, a cultura intermediária passou a marcar presença em quase todos os campos. A cultura erudita viu, assim, reduzidas suas áreas de exclusividade, mas com isso pôde concentrar forças e em certos setores atingir seu apogeu. O movimento conhecido por Renascimento do século XII ilustra bem esse fenômeno.
A Reação Folclórica
Com efeito, assistiu-se no século XI a um reequilíbrio de forças entre os dois pólos culturais. Assim como na Alta Idade Média ocorrera a clericalização de muitos elementos folclóricos, agora se dava a folclorização de elementos cristãos. O cristianismo, ao dessacralizar a natureza (que não se identificava mais com as divindades pagãs), tinha marcado nova etapa no pensamento racionalista, e nesse sentido a oposição folclórica representou a resistência de outro sistema mental, de outra lógica, a do “pensamento selvagem”.
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A cultura intermediária e a arte
Mas a emissão e a recepção da mensagem iconográfica não era, obviamente, sempre a mesma. As iluminuras de textos bíblicos e teológicos, consumidas apenas por clérigos, recebiam tratamento mais erudito. As esculturas, as pinturas murais, os mosaicos, os vitrais, colocados em igrejas, mosteiros e catedrais em locais visíveis a todos, transmitiam mensagens ao alcance desse público mais amplo.
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A cultura intermediária e a literatura
Na literatura latina, ao lado de uma produção nitidamente clerical (crônicas, poesias de cunho clássico), havia uma de espírito popular (hagiografia) e outra erudita mas antieclesiástica (goliárdica). Na literatura vernácula, havia gêneros com forte coloração clerical (canção de gesta, ciclo do Graal) e outros acentuadamente laicos (lais,fabliaux). Em termos culturais, portanto, e não apenas lingüísticos, boa parte da literatura da Idade Média Central estava na zona da cultura intermediária.
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A cultura clerical e o ensino
Um setor cultural que a Igreja monopolizava desde princípios da Idade Média continuou nos séculos XI-XIII sob seu controle, apresentando, todavia, características novas, que tendiam a escapar de sua alçada — o ensino. De qualquer forma, mesmo com certa laicização o ensino não deixava de estar na área da cultura clerical, entendida cada vez mais, como já dissemos, como cultura de letrados, e não apenas cultura de eclesiásticos.
Nesse processo, surgiram no século XI as escolas urbanas, que se transformariam em universidades no século XIII. Ambas eram produto do crescimento demográfico-econômico-urbano, que tornava a sociedade mais complexa e mais necessitada de atividades intelectuais. De fato, eram necessários sacerdotes em maior número e mais bem preparados para guiar fiéis mais numerosos e com novos problemas; juristas para uma maior quantidade de tribunais e às voltas com questões novas c mais difíceis; burocratas para os reis e grandes senhores feudais, cujos rendimentos, despesas e interesses se ampliavam; mercadores para atender à crescente procura de bens e que precisavam elaborar contratos, escrever cartas, controlar lucros e estoques.
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A cultura clerical e a teologia/filosofia
O curso universitário que gozava de maior prestígio, apesar de toda a laicização da sociedade e da cultura que ocorria no século XIII, era sem dúvida o de Teologia, especialmente o de Paris. O conhecimento nessa área mantinha-se virtualmente o mesmo dos séculos anteriores, com o termo então utilizado (sacra doctrina) indicando que ela abarcava apenas o que tinha sido revelado direta ou indiretamente por Deus: Bíblia, decisões de concílios, comentários há muito aceitos pela Igreja. Na expressão de Santo
Anselmo, era “a fé em busca da inteligência”.
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O redirecionamento da Baixa Idade Média
O frágil equilíbrio entre cultura clerical e cultura vulgar rompeu-se com a crise do século XIV. A razão disso está ligada ao fato de que na Baixa Idade Média “existia uma falta geral de equilíbrio no temperamento religioso, o que tornava tanto as massas como os indivíduos suscetíveis de violentas contradições e de mudanças súbitas” (62: 163). As manifestações culturais oscilavam então do mais estrito racionalismo ao mais fervoroso misticismo. A cultura clerical não tinha mais a coerência da Alta Idade Média e a cultura vulgar não possuía o mesmo vigor que na Idade Média Central. Buscava-se uma nova composição, da qual sairia à cultura renascentista dos séculos XV-XVI.
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Capítulo VII - As estruturas cotidianas
O caráter factual e descritivo que marcou de forma geral a historiografia até princípios deste século levava à desconsideração dos “pequenos fatos”, dos eventos do dia-a-dia, repetitivos, sem uma influência clara e direta sobre os “grandes fatos” (batalhas, sagração de reis, criação de instituições, surgimento de importantes obras literárias e artísticas etc). No entanto, a crescente compreensão de que o tecido da História é formado por fios dos mais variados tamanhos e cores permitiu o aparecimento de estudos sobre a vida cotidiana e privada das populações do passado. Ou seja, dos aspectos mais duradouros e presentes no desenrolar da História.
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O tempo
A Idade Média não se interessava por uma clara e uniforme quantificação do tempo. Como na Antigüidade, o dia estava dividido em 12 horas e a noite também, independentemente da época do ano. Os intervalos muito pequenos (segundos) eram simplesmente ignorados, os pequenos (minutos) pouco considerados, os médios (horas) contabilizados grosseiramente por velas, ampulhetas, relógios d'água, observação do Sol.
Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um controle maior sobre as horas, contando-as precariamente de três em três a partir da meia-noite (matinas, laudes, primas, terça, sexta, nona, vésperas, completas).
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Sexo
O surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psicológica e comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso. Tornado religião oficial em 392 e cada vez mais institucionalizado pela Igreja, já na Primeira Idade Média o cristianismo pôde impor seus
valores.
A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua mãe. Vinha depois a castidade: quem já havia pecado podia em parte compensar essa falta abstendo-se de sexo pelo restante da vida. Os relatos hagiográficos de toda a Idade Média, sobretudo de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de santas que morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao se converter ao cristianismo abandonaram a vida conjugal.
Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado, mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma “pagã”, no dizer da Igreja.
O matrimônio é uma relação monogâmica. Por um lado, isso atendia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unidade cosmológica, talvez como forma compensatória à grande diversidade da realidade concreta do Ocidente, dividido em vários reinos, milhares de feudos, dezenas de línguas e dialetos, diferentes liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana tentou-se impor o rito galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se concretizar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma só Igreja, uma só fé, um só governante secular. Por outro lado, a monogamia respondia a uma lenta mas inegável transformação na sensibilidade coletiva — que a Igreja soube reconhecer e tornar lei — pela qual se passava a ver a essência do casamento no consentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união deveria ser construída a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses políticos ou patrimoniais.
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Alimentação
Apesar das variações regionais de solo e clima, a Europa medieval consumia por toda parte praticamente os mesmos alimentos e bebidas, preparados quase que da mesma maneira.
Diferenças houve, acima de tudo, entre as categorias sociais. O aristocrata, eclesiástico ou leigo, recebia de seus camponeses, pelo uso da terra, prestações em serviço e produtos agrícolas. Podia, assim, consumir de tudo. Detentor de vários senhorios, um aristocrata não se fixava numa certa terra, morando cada parte do ano numa região, onde consumia a parcela da produção local que lhe cabia. Podia, então, ter alimentos todo o ano, independentemente das vicissitudes agrícolas de cada senhorio. Apesar disso, por razões culturais, o cardápio não era muito variado. Os legumes e verduras não estavam muito presentes, porque, sendo considerados produtos pouco nobres e de digestão difícil, ficavam reservados para dias de jejum. Os queijos, com exceção das regiões montanhosas, também eram desprezados pelas camadas dirigentes, que viam neles aumentos de camponeses, pela literatura, que os associava aos loucos, e pela medicina, que até o século XVI os considerava pouco saudáveis.
A base da alimentação aristocrática era, portanto, carnívora. Carne de animais domésticos, vaca, vitela, carneiro e sobretudo porco. Carne de caça, especial-mente cervo, javali e lebre. Carne de aves, galinha, pato, ganso, cisne, pombo. Carne de peixe de água doce onde possível, pescados em rios e lagos ou criados em tanques (carpa, sável, esturjão). Carne de peixe de mar, consumido fresco nas regiões litorâneas (salmão, linguado, pescado) ou seco nas regiões continentais (arenque, bacalhau). A bebida para acompanhar essas refeições era o vinho. A sobremesa nas mesas aristocráticas podia ser alguma fruta fresca (geralmente consumida no início das refeições ou nos intervalos entre elas) ou, mais comumente, frutas secas (figos, passas, amêndoas, nozes etc.) ou, preferencialmente, uma torta ou bolo doce.
A dieta burguesa procurava em linhas gerais imitar a aristocrática, sobretudo no seu fundamento carnívoro.
A alimentação camponesa estava baseada nos cereais, que forneciam as calorias necessárias para o esforço físico nas tarefas rurais. Cereais preparados sob a forma de papas e mingaus e especialmente de pão. Na verdade, o pão era essencial desde a Antigüidade.
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Moradia
a moradia apresentava grandes variedades regionais, resultantes das necessidades impostas pelo clima e das possibilidades permitidas pelos materiais de construção de cada local.
O norte úmido, frio e florestal definiu um estilo obviamente diferente do sul mediterrâneo seco, quente e pedregoso. As regiões montanhosas do norte ibérico, da zona pirenaica, do centro francês e da região alpina buscaram soluções próprias, diferenciadas das áreas planas. As cidades apresentavam, naturalmente, condições específicas, com uma grande população concentrada numa superfície pequena, enquanto o campo tinha uma densidade demográfica baixa. Mas, assim como os campos se diferenciavam pelo seu contexto geográfico, as cidades não eram iguais entre si. Uma grande sede feudal (como Troyes), a capital de um reino (caso de Londres), uma importante sé episcopal (Burgos, por exemplo), uma cidade dedicada ao comércio internacional (como Veneza ou Lübeck), uma cidade artesanal (como Ypres), um pequeno burgo rural (os mais comuns) não poderiam, por razões geográficas e profissionais, construir habitações e edifícios públicos da mesma forma.
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Vestuário
Por toda Idade Média a base do vestuário foi à túnica de mangas. Seu comprimento mudou várias vezes, mas geralmente ia até os tornozelos para as mulheres e até os joelhos para os homens. Debaixo dessa túnica usava-se uma camisa, longa no caso feminino, curta no masculino, pois os homens portavam ainda calções, uma espécie de ceroula que ia até os tornozelos. No inverno, quem tinha condições colocava diretamente no corpo, sob a camisa, uma peliça, espécie de colete de pele, sem mangas Por cima de tudo vinha uma capa, às vezes com capuz, de pele no caso dos mais ricos, de lã no dos mais simples. O calçado podia ser bota de couro de cano alto para os ricos ou simples sapatilha de tecido para os mais pobres. O uso de luvas era difundido em todas as categorias sociais.
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Lazer
Os medievais levavam uma vida material dura, os clérigos passando muitas horas por dia em orações, estudo e tarefas cotidianas de sua diocese ou mosteiro, os senhores laicos em exercícios militares e administração de seu senhorio, os burgueses em difíceis negociações e perigosas viagens, os camponeses num trabalho pesado e de retorno nem sempre compensador.
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Morte
Vivendo num mundo agrícola, em que se percebe cotidianamente como alguns seres precisam morrer para que outros possam viver, convivendo com a constante ameaça da fome, das epidemias e das guerras, os medievais sentiam a onipresença da morte, mas isso não os incomodava. Eles tinham dela uma visão natural, tranqüila, diferente da de seus descendentes dos séculos seguintes. Como o cristianismo ensina que a morte é o começo da vida eterna, e não o fim definitivo, chegado o momento as pessoas procuravam se preparar. A grande tragédia não era morrer, mas morrer inesperadamente, sem ter confessado, recebido os sacramentos, feito doações e esmolas, estabelecido o testamento. Tinha-se consciência e resignação pelo fato de que o destino das espécies vivas é morrer. A morte
nivela os homens e mostra o despropósito de seu orgulho e suas riquezas.
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Capítulo VIII - As estruturas mentais
Apenas há pouco tempo foi tornado objeto de estudo o fato óbvio de que o homem, e portanto a História, é formado tanto por seus sonhos, fantasias, angústias e esperanças quanto por seu trabalho, leis e guerras. Desta forma, é fundamental a compreensão do primeiro conjunto de elementos para que o segundo ganhe sentido. Bem entendido, não se trata de adotar uma postura determinista, atribuindo tudo à mentalidade (ou à economia, ou à política etc.)- Mas é preciso considerar o pano de fundo mental, “o nível mais estável, mais imóvel das sociedades” (LE GOFF: 69).
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A visão hierofânica de mundo
Para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era sagrado, fenômeno psicossocial típico de sociedades agrárias, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças desconhecidas e não controláveis.
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O simbolismo
“A função do símbolo é religar o alto e o baixo, criar entre o divino e o humano uma comunicação tal que eles se unam um ao outro” (39: 98). E encontro de duas realidades numa só, ou melhor, expressão da única realidade sob outra forma. O símbolo é inferior à realidade simbolizada, mas por intermédio daquele o homem se aproxima desta, restabelecendo a unidade primordial. Por isso ele está presente em todas as religiões, cujo sentido é exatamente esse de religar mundo humano e mundo divino. Entende-se, dessa forma, que a relação do símbolo com a coisa simbolizada seja profunda, de essencialidade.
Todos os elementos da natureza, animais, plantas, pedras, são símbolos, respondendo à necessidade de exprimir o invisível e o imaterial por meio do visível e do material. Por essa razão, o templo cristão não poderia deixar de ter forte carga simbólica, especialmente no período românico. A planta em cruz terminando numa cabeceira com várias capelas expressava a concepção de que a igreja era o próprio corpo de Cristo, daí o portal ser um arco do triunfo para se entrar no Reino de Deus.
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O belicismo
Esta característica da mentalidade medieval decorria da presença constante daquelas manifestações sagradas nas suas duas modalidades, vistas do ponto de vista humano, benéficas e maléficas. Elas prolongavam no palco terreno a luta que envolvia temporariamente todo o universo. Os poderes negativos constituíam-se numa realidade palpável para aquela sociedade de tempo rigidamente dividido entre dia e noite, sem luz artificial eficiente, na qual as trevas eram fortemente sentidas. Sua presença cotidiana era indisfarçável e esmagadora. As atividades humanas ficavam limitadas às horas diurnas. A noite era o momento do desconhecido, portanto do assustador. Significativamente, ela era circunstância agravante para a justiça medieval
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O contratualismo
Por fim, do belicismo derivava o contratualismo, estrutura mental que via o homem ligado, com os correspondentes direitos e deveres, a uma ou outra daquelas forças universais em luta. A opção pelo Mal dava origem ao chamado pacto demoníaco, como na conhecida história de Teófilo. Querendo ser nomeado vigário, ele recorreu aos serviços de um judeu que o levou até a presença do Diabo, de quem se tornou “bom vassalo” após renegar Cristo e Maria. Numa carta entregue ao “rei coroado” do Inferno, ele formalizava o acordo, e obteve então as glórias e vantagens que desejava. Depois, arrependido, pediu ajuda à Virgem, “porta do Paraíso”, para recuperar aquela carta, pois “isto foi o pior”, e sem reavê-la não poderia romper seu trato com Satanás. A Virgem o ajudou, o contrato demoníaco foi queimado e ele pôde ter sua alma salva.
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Capítulo IX - O significado da Idade Média
Após os exageros denegridores dos séculos XVI-XVII e os exaltadores do século XIX, hoje temos uma visão mais equilibrada sobre a Idade Média. E verdade que a divulgação que ela conheceu em fins do século XX fora dos meios acadêmicos — inúmeras publicações científicas e ficcionais, filmes, discos, exposições, turismo etc. — nem sempre implicou uma melhor compreensão daquele período. Mas reflete um dado essencial: a percepção que se tem da Idade Média como matriz da civilização ocidental cristã. Diante da crise atual dessa civilização, cresce a necessidade de se voltar às origens, de refazer o caminho, de identificar os problemas. Enfim, de conhecer a Idade Média para conhecer melhor os séculos XX-XXI.
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A longa Idade Média
Os quatro movimentos que se convencionou considerar inauguradores da Modernidade — Renascimento, Protestantismo, Descobrimentos, Centralização — são em grande parte
medievais. O primeiro deles, o Renascimento dos séculos XV-XVI, recorreu a modelos culturais clássicos, que a Idade Média também conhecera e amara. Aliás, foi em grande parte por meio dela que os renascentistas tomaram contato com a Antigüidade. As características básicas do movimento (individualismo, racionalismo, empirismo, neoplatonismo, humanismo) estavam presentes na cultura ocidental pelo menos desde princípios do século XII.
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A herança medieval no século XX
O patrimônio lingüístico ocidental é quase todo medieval, já que, com exceção do basco, idioma cujas origens continuam desconhecidas para os especialistas, às demais línguas formaram-se na Idade Média. Uma terça parte da população mundial atual, isto é, 2 bilhões de pessoas, pensa e se exprime com instrumentos lingüísticos forjados na Idade Média. De fato, ao lado do latim legado pela Antigüidade — e durante a Idade Média empregado nos ofícios religiosos, nas atividades intelectuais e na administração, mas língua morta no sentido de não ser mais língua materna de ninguém —, no século VIII nasceram os idiomas chamados de vulgares, falados cotidianamente por todos, mesmo pelos clérigos. Correndo o risco de simplificar em demasia um processo longo e complexo, podemos dizer que aqueles idiomas se formaram da interpenetração — em proporção diferente a cada caso — do celta, do latim e do germânico.
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A herança medieval no Brasil
Mesmo no Brasil, que vivia na Pré-História enquanto a Europa estava na chamada Idade Média, muitos elementos medievais continuam presentes. A colonização portuguesa introduziu práticas que, apesar de já então superadas na metrópole, foram aqui aplicadas com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos séculos e muitos aspectos da história brasileira. Luís Weckmann detectou com pertinência a existência de uma herança medieval no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o século XVII. E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços essenciais.
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Conclusão - O nascimento do Ocidente
Homem atual se reconhece mais nas coisas superficiais, de origem recente, do que nas essenciais, que vêm daquela época. Este é um grave problema do mundo atual, no qual os
meios de comunicação de massa uniformizam, apagam e constroem fatos incessantemente. Desta forma, há um afastamento da cultura, baseada no indivíduo, na inquietação, na interrogação, não em respostas prontas e rápidas.
A fraqueza do homem medieval era sua força, pois gerava desejos, motivações. A força do homem atual é sua fraqueza, pois gera desilusões. Na verdade, foi conseguindo ao longo dos séculos satisfazer aqueles desejos que o homem chegou à situação atual. Satisfação de desejos que se deu mais no plano material do que no espiritual, daí certa sensação de vazio, de falta de sentido das coisas, que a arte e a literatura contemporâneas expressam fartamente. De certa forma, a crise da civilização ocidental deve se ao descompasso entre o externo (contemporâneo) e o interno (medieval). E uma excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo. E uma espécie de esquizofrenia coletiva e social. Em razão disso, os crescentes prestígio e popularidade dos estudos sobre a Idade Média têm algo, inconscientemente, de busca de reintegração dos dois planos.
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